Esquerda, direita e o paradoxo da democracia

Esta semana, mais uma vez, pedirei licença para publicar uma coluna diferente. Recebi um excelente texto do amigo Bruno Brunnett, GRADUADO E Mestre em Ciências das Religiões pela UFPB e considero sua leitura importante para nos trazer algumas necessárias reflexões sobre a conjuntura política e social do Brasil atual. Aproveito para registrar minha gratidão pela contribuição e pelos excelentes diálogos comigo.

Segue:

Inicialmente gostaria de fazer um gancho entre o texto Polarização e luta de classes na eleição presidencial de 2022, publicado na coluna Política e Religião em 01 de outubro e a preocupante ascensão da violência política na sociedade brasileira. Pois bem, como nossa amiga Regina Negreiros bem colocou, o Brasil se encontra em um processo de polarização já há algumas décadas, gostaria apenas de fazer uma complementação e tecer alerta sobre o perigo dessa polarização de 2016 para cá.

A polarização é um movimento normal da política, onde as pessoas tentam encontrar nomes e grupos para se enquadrarem em determinadas filosofias, ideologias, identidades etc. Na política do Brasil atual, essa polarização se dá através dos termos “esquerda” e “direita”. Sem querer estender muito, precisamos entender um pouco sobre esses termos, para termos noção de onde está chegando esse barco.

O conceito de esquerda e direita no meio político deriva de uma disposição parlamentar encontrada no fim da monarquia francesa. Com a queda da Bastilha e ascensão de Napoleão Bonaparte, preparando terreno para a implementação da república absolutista secularista, os Girondinos, representando a burguesia e os agentes políticos conservadores, que pretendiam perpetuar diversas de suas regalias que tinham durante a monarquia, foram posicionados à direita do Palácio das Tulherias. Por sua vez, à esquerda, apelidado de “a Montanha” (Montagne) foram colocados os Jacobinos, representando a parte da burguesia revolucionária, que defendiam o sistema de república presidencial, secularização e laicidade do estado, os avanços do Iluminismo, dentre outras pautas. Por fim, ao centro, chamado de “a Planície”ou “o Pântano”, foram colocados os burgueses sem posição política definida/explícita.Entendendo esse contexto, essa disposição política cria uma espécie de referência/identificador para o espectro político até os dias atuais.

Ilustração da disposição entre Esquerda, Centro e Direita no Palácio de Tulherias

Voltando ao Brasil, enfrentamos alguns (não os únicos) problemas particulares de nossa nação:

Utilização do meio religioso como manipulação para fins políticos partidaristas;
Demonização da esquerda e surgimento do antipetismo, difundido pela extrema direita e massificado pela grande mídia;
Ascenção do maniqueísmo como “salvação” dessa demonização, ou seja, o outro é o “mal” a ser erradicado (“fuzilado”), eu sou o “bem” a ser salvo;
Entender a diferença política não mais como adversário, e sim como inimigo.

Embora haja vários outros fatores que expliquem e agravem nosso dualismo dicotômico na política, focamos apenas nestes para não nos estendermos demais.

O primeiro ponto é, talvez, o mais abrupto quando analisamos essa situação, e os demais acabam sendo consequência deste. Não entremos no mérito religioso, evitando justamente esse maniqueísmo nada saudável, não estamos aqui para atacar nenhuma crença, religião, expressão religiosa, espiritualidade etc., menos ainda aos que não tem nenhuma, como no caso dos arreligiosos, irreligiosos e ateus, estamos apenas apresentando causa e efeito da situação. Pois bem, interessante também observarmos primeiro que, mesmo não havendo a presença de religiosidade no indivíduo, muitas das vezes ele acaba por utilizar um “maniqueísmo reverso”, se assim pudermos fazer essa comparação, ou seja, ele é vítima do maniqueísmo, quando colocado do lado “mal” da história, e (às vezes) causador ao mesmo tempo, quando devolve com a mesma retórica, apenas invertendo-o do lado do “mal” para o“bem” da situação, alimentando o ciclo, por vezes até sem perceber;mas não nos aprofundaremos nessa questão também, seremos mais diretos ao ponto.Ainda neste primeiro ponto, aqui nasce a retórica religiosa, e deturpada, no meio político. Focaremos mais precisamente aqui no cristianismo, que é a maior vertente religiosa deste país, portanto, a mais presente e a que detém mais poder persuasivo.

Precisamos observar que, o atual postulante à Presidência da República, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, acaba por ser vítima de uma benesse a quem mesmo sancionou lá atrás no seuprimeiro mandato, em 2003, quando foi criada a “lei da liberdade religiosa”. De lá para cá vimos um boom de igrejas pelo Brasil; hoje, é mais fácil encontrarmos uma igreja do que uma escola, por exemplo. Nesse contexto, surge uma situação peculiar, com o talboom, temos também o boom de autointitulados profetas, consequentemente o boom de religiosos influenciando a vida privada, pública, política e religiosa dos indivíduos. Ironicamente, encontramos na própria Bíblia Sagradauma passagem sobre isso, mais precisamente no livro de Mateus, capítulo 24:

Mateus 24:4-13: Jesus respondeu: “Cuidado, que ninguém os engane. Pois muitos virão em meu nome, dizendo: ‘Eu sou o Cristo!’ e enganarão a muitos. Vocês ouvirão falar de guerras e rumores de guerras, mas não tenham medo. É necessário que tais coisas aconteçam, mas ainda não é o fim. Nação se levantará contra nação, e reino contra reino. Haverá fomes e terremotos em vários lugares. Tudo isso será o início das dores. “Então eles os entregarão para serem perseguidos e condenados à morte, e vocês serão odiados por todas as nações por minha causa. Naquele tempo muitos ficarão escandalizados, trairão e odiarão uns aos outros, e numerosos falsos profetas surgirão e enganarão a muitos. Devido ao aumento da maldade, o amor de muitos esfriará, mas aquele que perseverar até o fim será salvo.

Mateus 24:23-26:Se, então, alguém lhes disser: ‘Vejam, aqui está o Cristo!’ ou: ‘Ali está ele!’, não acreditem. Pois aparecerão falsos cristos e falsos profetas que realizarão grandes sinais e maravilhas para, se possível, enganar até os eleitos. Vejam que eu os avisei antecipadamente. “Assim, se alguém lhes disser: ‘Ele está lá, no deserto!’, não saiam; ou: ‘Ali está ele, dentro da casa!’, não acreditem.

Independente de crença, religião, filosofia etc., deixo aqui a reflexão dessas passagens para cristãos e não cristãos sobre a quantidade de autointitulados profetas.

Então, entramos no segundo ponto desta questão. Aqui, é onde começam a acontecer os problemas de fato, até então tínhamos apenas uma ascensão vertiginosa de uma vertente religiosa.

O forte crescimento e facilidade de se abrir uma igreja nos apresenta alguns aspectos negativos dessa perspectiva, a exemplo de más interpretações dos textos sagrados, devido à falta de letramento suficiente ou até mesmo estudos exegéticos, há uma enorme probabilidade de se transmitir um conhecimento que não é de fato o sentido real do texto, às vezes, mesmo com a melhor das intenções pode acorrer esses deslizes. Outro ponto dessa questão é a responsabilidade em “deter”o rumo de um grande número de pessoas, se unirmos o primeiro ponto com este, temos o risco de dar poder a um grande serviço de deseducação, não apenas no contexto religioso, como também em outras esferas, que já é realidade com a forte ascensão do negacionismo no Brasil, como podemos ver como fortalecimento dos movimentos antivacina e anticiência, para citar alguns desses exemplos.Por fim, neste segundo momento chegamos ao ponto que, talvez seja o mais crucial, onde dá-se vida e força aos extremismos e demonizações.

Os extremismos estão sempre de olho em ferramentas a serem utilizadas como forma de manipulação massiva;desta forma, se inserir no meio religioso é, talvez, o mais efetivo deles. No contexto brasileiro, a extrema direita acaba enxergando no fundamentalismo religiosoum meio muito efetivo de propagação de ideias intolerantes. Aqui, voltamos a um momento preocupante da política brasileira, a união da Política e da Religião (em sentido geral) como uma só ferramenta. Claro, sabemos que a religião é uma forma de política, mas, nesse contexto, nos referimos a seu uso para decisões das políticas administrativas.Então, essa postura já é bem conhecida pela história e sabemos que sistema de governo é esse, a Teocracia, eis que encontramos no Brasil grupos de governo apelidados por “bancada da bala”, “bancada/gabinete do ódio”; e o que vem posteriormente não se resume exclusivamente a eles, que é a ampla e explícita difusão de posturas claramente supremacistas, raciais, étnicas, culturais, religiosas etc.A partir deste momento vemos o surgimento e fortalecimento de posturas “anti” voltadas para a repressão/opressão, não mais para a libertação, a exemplo da tentativa de criminalizar/demonizar o comunismo, socialismo, esquerda, petismo etc., chegando até a encontrarmos com muita facilidade pessoas criando total aversão à cores, como é o caso da cor vermelha, que podemos encontrar aos montes internet a fora, pessoas que não podem ver nada que contenham a cor que já partem para a agressão, inclusive física, mas não nos aprofundaremos nessa questão, pois dá abertura para muita discussão.

Após todos esses acontecimentos, nesse momento já estamos afogados em problemas de todos os lados e todos os tipos, porém, vamos focar exclusivamente na utilização do maniqueísmo para isso.

Para não prolongar mais, faremos uma brevíssima explicação sobre o maniqueísmo: sendo basicamente um sistema de crenças da antiga Pérsia onde cria-se o conceito dicotômico e antagônico entre “bem” e “mal”, onde um deve eliminar o outro.

Qualquer semelhança com atual política brasileira não é mera coincidência, pois, o maniqueísmo político é quase onipresente. Todos esses pontos abordados até aqui, criaram situações como as que foram vistas nas eleições presidenciais de 2018, onde foi amplamente difundido frases como “vamos fuzilar a petralhada”ao mesmo tempo que se utilizava um suporte de câmera para simular um fuzil real; vimos também que, o aprofundamento do suposto combate ao “mal” criou e alastrou por todo o paísa utilização de um gesto como ícone de identificação, associado à um político, uma ideologia e uma postura, tal gesto, também remetendo à uma arma de fogo (já vimos isto anteriormente em um certo país europeu); vimos também (e ainda continuamos vendo nestas eleições de 2022) a utilização da xenofobia como forma de tentar justificar, menosprezar e diminuir a vontade do “opositor”,atribuindo à pobreza, condições da região, “burrice”, religião, e, alguns casos extremos, ao “amaldiçoamento”, como é facilmente encontrado em diversos áudios propagados pelas mídias e redes sociais.

Eis que, então, percebendo e entendendo como chegamos até aqui. Nessa polarização, demonização, fúria, distribuição gratuita de ódio, rancor, acusações, ameaças e até agressões, resultado do processo dicotômico antagônico e maniqueísta. Fica mais fácil entender como as pessoas chegaram neste ponto político, de não mais enxergar o outro como um adversário, e sim como um inimigo. O processo republicano democrático ameniza esses atritos que, no passado eram resolvidos com sangue, dominação e violência. E, no Brasil atual, vemos essa postura antirrepublicana retomando força, o mais preocupante é que sempre utilizado a demagogia em nome da “liberdade”, “tolerância” e/ou “democracia”, o que facilmente nos remete aos trêsParadoxos apresentados por Karl Popperem sua obra The Open Societyand Its Enemies(1945), são eles:da Liberdade, da Tolerânciae da Democracia. Para finalizar,fazendo uma brevíssima abordagem sobre esses três paradoxos, temos as seguintes problemáticas:

No Paradoxo da Liberdade, Popper remete à Platão, quando afirma que: se for permitido liberdade absoluta e irrestrita, o homem livre desafiaria a própria liberdade ao clamar um tirano ao poder. Ou seja, a liberdade sem controle, futuramente, seextinguiria pelo fato de oshomens violentos aproveitarem de sua liberdade para escravizar os fracos. Portanto, caberia ao estado garantir a liberdade, restringindo algumas.

Já no Paradoxo da Tolerância, a tolerância sem limites ocasionaria um processo similar ao anterior, com algumas particularidades. Ao tolerar toda e qualquer ação, os intolerantes extinguiriam a tolerância através de sua intolerância. Ou seja, os intolerantes destruiriam todos os tolerantes, com isso, a própria tolerância no processo; portanto, caberia aos tolerantes não tolerarem intolerâncias.

E, por fim, chegamos noParadoxo da Democracia, que é basicamente resultado dosproblemas anteriores, ondePopper novamente remete-se à Platão, que levantam a seguinte problemática: Uma nação democrática com uma maioria antidemocrática extinguiria a democracia elegendo um tirano a partir do voto legítimo, pondo no poder agentes que não acreditam em instituições livres ou democráticas.

Diante destasreflexõeslevantadas aqui, podemos perceber quão crítica é a situação de nosso Brasil atual, onde parece estarmos vivendo no paradoxo da democracia. Muitos indivíduos sequer param para observar as consequências de tais demagogias, extremamente prejudiciais aos valores primordiais de uma democracia plena, como é o caso da Liberdade, Tolerância e o próprio conceito de Democracia em si. Tais inclinações vêm se agravando nesta última década e vamos cada vez mais nos afogando em valores, retóricas e posturas autocráticas e extremistas, estimulado por agentes públicos que claramente não prezam por uma república democrática e seu estado de direito, assim como seus seguidores/veneradores replicando tais posicionamentos. Para muitas destas pessoas, a noção de democracia é deturpada, ondeos outros devem “engolir” suas opiniões e ações, mas o inverso não é verdadeiro; ou seja, éo autoritarismo, a autocraciamascaradacom a falsa retórica de democracia, é onde impera a máxima popular,almejando “liberdade de opressão” e não “liberdade de expressão”.

 

Referências:

BRASIL.LEI No 10.825, de 22 de dezembro de 2003.        Dá nova redação aos arts. 44 e 2.031 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, que institui o Código Civil. Brasília: Casa Civil da Presidência da República, 2003.Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.825.htm

BIBLIA ON LINE. Disponível em: https://www.bibliaonline.com.br/nvi/mt/24

POPPER, K. R. The Open Society and Its Enemies.Londres: Routledge, 1945.

Foto: Mídia NINJA