A Ideia de Religião no Iluminismo – parte II
Na medida em que a luz se faz, a sombra se projeta, mas tudo depende de perspectiva. Na coluna anterior abordamos o iluminismo na perspectiva de Ernest Cassirer, filósofo alemão de origem judaica que viveu entre os séculos XIX e XX. O movimento inegavelmente trouxe importantes contribuições, mas a sombra do iluminismo também projetou consigo o racismo epistemológico e a subalternização das populações negras durante o período neocolonial, o que poderá ser abordado mais adiante, por enquanto é importante compreender que o iluminismo não era um movimento cético, pois trazia consigo um cristianismo que tentava se apoiar na ideia racional da fé, conforme discutido na coluna anterior.
O dogma do pecado original e o problema da teodicéia
A literatura no período iluminista é abundante, no entanto, não foi o iluminismo o precursor dos questionamentos acerca da religião, “porquanto já o encontrou na herança espiritual dos séculos precedentes e contentou-se em abordá-lo com os novos instrumentos intelectuais que adquirira nesse meio tempo” (CASSIRER, 1992, p. 193). Já na Renascença havia a pretensão de uma renovação da religião, em vista de uma adesão ao mundo e afirmação do espírito. Assim se estabelece o deísmo universal como a teologia de inspiração humanista dos séculos XVI e XVII. Essa teologia tem raízes na ideia de que a essência do divino só é apreendida no conjunto das suas manifestações. Se todas as expressões do divino não expressam sua essência, cada uma delas é igualmente válida. Já na Renascença havia a pretensão de uma renovação da religião, em vista de uma adesão ao mundo e afirmação do espírito. Assim se estabelece o deísmo universal como a teologia de inspiração humanista dos séculos XVI e XVII. Essa teologia tem raízes na ideia de que a essência do divino só é apreendida no conjunto das suas manifestações. Se todas as expressões do divino não expressam sua essência, cada uma delas é igualmente válida. Já na Renascença havia o anseio de uma renovação da religião fundada dentro dos limites da humanidade, estabelecendo o deísmo universal como a teologia de inspiração humanista dos séculos XVI e XVII, buscando “compreender e interpretar o próprio dogma de maneira a fazer dele a expressão da nova consciência religiosa” (CASSIRER, 1992, p. 194).
A religião humanista, no entanto, foi oposta pela Reforma, muito embora ambas confiram um novo valor à vida terrena que é a exigência de transformação do mundo. Mas a “fé na qual vivem e morrem os reformadores é a fé no caráter único e absoluto da palavra bíblica” (CASSIRER, 1992, p. 196), sendo a Bíblia e unicamente ela associada a certeza da salvação. Inevitavelmente ocorre a ruptura com o humanismo e tal fato “consuma-se com um rigor e uma lucidez implacáveis no De servo arbítrio, de Lutero” (CASSIRER, 1992, p. 196).
A reforma radicaliza o dogma do pecado original, aceitando que a natureza humana corrupta é agora a única e definitiva natureza humana, e é justamente a ideia do pecado original “o alvo comum que une em sua luta as diversas tendências do pensamento iluminista. Hume bate-se ao lado do deísmo inglês, Rousseau ao lado de Voltaire: parece que, por algum tempo, a fim de abater esse inimigo comum, nada resta das diferenças e divergências” (CASSIRER, 1992, p. 198).
É assim que a ideia do pecado original volta a ser discutida na filosofia do século XVIII através de Pascal que traz no cerne do seu método e demonstração uma arguição cartesiana. A sua tese é a impotência radical da razão, que só pode chegar à verdade submetendo-se à fé. Mas ele não aspira pregar a necessidade dessa submissão, pretendendo provar sua necessidade ao descrente e, para isso, se serve da lógica analítica para apresentar seu paradoxo entre o imanente e o transcendente.
Voltaire é um crítico severo da tese pascalina e “recorre a um ‘senso comum’, que converte em juiz das sutileza da metafísica” (CASSIRER, 1992, p. 202). Para Voltaire, o mal moral seria inegável, mas necessário, pois sem ele estaríamos condenados à imobilidade e Deus seria uma verdade rigorosamente demonstrável, ainda assim, rechaçava o otimismo como doutrina metafísica, sendo, portanto, “favorável ao cepticismo teórico, contra a teologia e a metafísica” (CASSIRER, 1992, p. 204).
A questão da teodiceia perpassa a literatura do século XVIII a partir de diversos pensadores, inclusive os pensadores adeptos da psicologia empírica que busca tratar a sob a perspectiva do prazer ou da dor como fator predominante na existência humana para explicar os fenômenos psíquicos com base em uma metodologia analítica de cálculos matemáticos demonstráveis.
A busca incessante por respostas, a inquietude filosófica própria da ebulição do pensamento iluminista, no entanto, não encontram respostas, apenas perguntas que seguem em um fluxo tautológico. Para sair do fluxo incessante que sempre recorria, de alguma forma, a fé e a metafísica, e para não mergulhar no abismo do irracional de que falava Pascal, só restava um caminho: a solução imanente, “que não force o espírito a ultrapassar seus próprios limites” (CASSIRER, 1992, p. 210).
Rousseau, no entanto, é o primeiro a encontrar uma perspectiva que confere ao século XVII novos ares, descolando-se dos problemas teoréticos da teodiceia para uma perspectiva “acima do plano da existência individual para situá-lo expressamente no nível da existência social” (CASSIRER, 1992, p. 212), passando a existência humana, a partir dessa perspectiva, a ser permeada pela ideia do direito e da justiça social: “Vi que tudo dependia radicalmente da política e que, fosse qual fosse o ponto de vista que se adotasse, nenhum povo jamais seria senão aquilo que a natureza do seu governo o fizesse ser” (CASSIRER, 1992, p. 212), e se aproximando do pensamento de Pascal, observa que as riquezas vistosamente acumuladas são mecanismos de fuga do homem de si mesmo que não consegue suportar-se, pois “contemplar-se a si mesmo o espanta e o enche de medo” (CASSIRER, 1992, p. 214). A aproximação com Pascal, no entanto, vai só até esse ponto, tendo em vista que Rousseau defende que nenhuma simpatia verdadeira há entre os homens, pois que estes aspiram apenas à dominação e a vaidade em detrimento do coletivo, ou seja, a individualidade e o desejo de poder se sobressaem em uma vida de aparências. No entanto, essa atitude em sociedade não é algo natural do homem, e sim do homem moldado e construído socialmente, tendo em vista que “ao sair das mãos do Autor das coisas; tudo degenera nas mãos do homem” (CASSIRER, 1992, p. 216) que é um algoz da natureza e de si mesmo. A sociedade criou o mal, e é ela quem deve revogá-lo. E assim, Rousseau ressitua o problema da teodiceia, “fazendo-o passar do plano da metafísica para o centro da ética e da politica” (CASSIRER, 1992, p. 217), fazendo com que o século XVIII caminhe em um processo de secularização.
A ideia de tolerância e a fundação da “religião natural”
A filosofia iluminista norteia-se pelo princípio geral de que o pior obstáculo ao conhecimento não é a ignorância, mas a falsificação dos critérios. O inimigo da ciência não é a dúvida, mas o dogma. O dogma é a ignorância atribuída como uma verdade, portanto, o que se opõe à fé não é a incredulidade, mas a superstição “que afeta as próprias raízes da fé” (CASSIRER, 1992, p. 221).
Bayle é o primeiro pensador a adotar esse modo de pensar e defende que haja um critério rígido pelo qual se deve julgar a verdade da fé. Ele não combate o ateísmo, mas a idolatria e a superstição, pois, a ignorância está mais próxima da verdade que o preconceito. O iluminismo passa a reassumir o princípio cartesiano do racionalismo guiando-se pela “regra universal e absoluta de só pronunciar julgamentos alicerçados em ideias claras e distintas” (CASSIRER, 1992, p. 223).
Nesse conjunto de fatos e pensamentos em constante ebulição epistemológica, o pensamento religioso começa a adquirir nova forma e, no lugar do pathos religioso surge um ethos religioso que emerge da ação e, se a essência da religião só se realiza na ação, está aí a sua universalidade, uma religião natural, que não teve início e não terá fim. E assim o iluminismo esforça-se por fundar uma religião nos limites da razão e “adere com toda a firmeza ao partido de uma religião única dissimulada sob a diversidade dos ritos e conflitos de representação e de opinião” (CASSIRER, 1992, p. 226).
Em Cristianity as old as the Creation (1730), Tidal afirma que Deus deve necessariamente se revelar igualmente a todos, de forma que a diferença entre a religião natural e a religião revelada está na forma como são conhecidas pelos homens. A lei cristã seria a reafirmação da lei natural, não havendo oposição entre elas, de forma que a “religião consiste em reconhecer nos nossos deveres os mandamentos de Deus, em relacionar normas morais de uma validade e de um alcance universais com o seu autor (CASSIRER, 1992, p. 236), onde o deísmo moral assume o espaço do deísmo construtivo que influencia todo século XVIII a partir de então. O racionalismo teológico chega a intimar o conteúdo da fé a apresentar-se diante do tribunal da razão e a negar a necessidade da revelação como fonte específica de conhecimento.
Samuel Clarke abre espaço para questionar a ortodoxia, mas é David Hume que rompe com o predomínio do deísmo, questionando a ideia de natureza humana e o princípio da causalidade. Na história natural da religião, Hume afirma que “foi pela esperança e pelo medo que os homens foram inicialmente conduzidos à crença e nesta ficaram constantemente retidos. Por aí penetramos, enfim, na verdadeira camada originária da religião. De tal maneira, não há fundamento racional ou ético para a religião, seu fundamento é antropológico. A superstição e o medo são a verdadeira raiz da ideia de Deus e se bem observarmos, “a religião tem por toda parte o mesmo rosto” (CASSIRER, 1992, p. 236).
O ceticismo recai sobre a religião natural e sobre a religião revelada quando Hume pensou em denunciar a religião natural como divagação filosófica. Mas é importante destacar que o método adotado por Hume “não é característico do século XVIII. Este século tinha confiança demais no poder da razão para renunciar ao seu uso a respeito de ponto tão vital” (CASSIRER, 1992, p. 245), por isso o pensamento de Hume em História natural da religião permaneceu um fato isolado no período iluminista.
REFERÊNCIA:
CASSIRER, Ernst. A Filosofia do Iluminismo; trad.: Álvaro Cabral – 3ª ed – Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 1997, p. 189-245