A neutralidade no campo político em tempos de ameaça à democracia
Outro dia, em conversa informal com uma pessoa logo após as eleições municipais, escutei a seguinte afirmação: “eu respeito quem vota, mas eu não vou votar, apenas justifico porque sou Testemunha de Jeová. Você deve saber que nós não votamos!” Apesar de uma pessoa que pesquisa e lê muito, especialmente sobre as religiões afro-brasileiras e afro-indígenas, não sei tudo, porque a educação, como bem afirma Paulo Freire, é um processo inacabado de contínuo aprendizado. Naquele momento um aprendizado novo começou a florescer porque despertou em mim o motivo pelo qual os adeptos desse segmento religioso não participam do processo eleitoral que é tão importante para a coletividade.
A partir de algumas leituras sobre o tema, observei algumas justificativas para a “neutralidade”, dentre elas, que são orientados pela bíblia para a neutralidade como no caso de Jesus afirmar que seu reino não é deste mundo em João 18:36: “Meu Reino não faz parte deste mundo. Se meu Reino fizesse parte deste mundo, meus assistentes teriam lutado para que eu não fosse entregue aos judeus. Mas o fato é que o meu Reino não é daqui.” Contra essa afirmação eu diria: mas infelizmente é nesse mundo que vivemos e por isso precisamos viver com dignidade e justiça social, pensando no bem comum dos que vivem e nos que um dia viverão. Além disso, acredito que há uma contradição, um paradoxo, nessa crença, pois em Romanos 13:1 há a afirmação de que “todos estejam sujeitos às autoridades superiores, pois não há autoridade sem a permissão de Deus; as autoridades existentes foram colocadas por Deus em suas posições relativas”. De tal forma penso, se as autoridades foram colocadas por Deus é porque Deus teria uma intenção para com ele ou ela e sendo o religioso um filho desse mesmo Deus, ele deveria partilhar de suas escolhas.
Não estou aqui querendo questionar a fé de ninguém, que fique claro! Apenas levanto questionamentos para uma boa reflexão já que a escolha política interfere na nossa vida e nos modos como vivemos. Além disso, essa questão é muito mais profunda e merece um olhar mais cuidadoso, pois, segundo Estevam Mendes (2023, p. 124), as Testemunhas de Jeová acreditam que “os governoshumanos estão sob o controle dos demônios”. Além disso, creem que existe no estabelecimento do Reino de Deus na terra e este levará a uma guerra contra os governos mundanos: “Será um tempo de aflição. Mentiras espalhadas por Satanás e seus seguidores que envenenarão os líderes políticos das nações. Ao fim da contenda, o Governo de Deus será o único vitorioso. O melhor que a humanidade já teve” (MENDES, 2023, p. 124). Como se pode perceber, nas entrelinhas fica explicita a relação entre a religião e a política, mesmo assim, esses adeptos se afirmam como politicamente neutros. Ou seja, há muito mais questões relacionadas do que meramente um posicionamento político fundamentado na bíblia.
Esse diálogo ocorreu numa segunda feira pela manhã. Na sexta feira eu ainda estava matutando sobre ele e fazendo minhas conexões filosóficas, politicas, culturais etc., e pelo fato desse tema ter me instigado e ter se conectado ao atual cenário político, no qual há, mais uma vez, uma evidente ameaça à democracia em alguns municípios brasileiros, como é o caso de João Pessoa – PB e São Paulo – SP, cidades nas quais a extrema direita quer fazer morada, resolvi escrever algumas linhas sobre o tema em qustão. E foi a partir desse momento político e desse diálogo com uma pessoa Testemunha de Jeová que resolvi voltar a Paulo Freire, o patrono da educação brasileira desde 2012, considerado um dos mais importantes teóricos da história da educação no Brasil e no mundo, quando ele afirma, categoricamente que “lavar as mãos em face da opressão é reforçar o poder do opressor, é optar por ele” (FREIRE, 2018, p. 109). De tal modo, em tempos de ameaça à democracia, não creio haver neutralidade possível.
Há na filosofia o princípio da aplicação do mal menor, formulada por São Tomás de Aquino, a teoria do mal menor é uma abordagem ética que defende que, diante de um dilema moral, se escolha a opção que cause o menor prejuízo ao indivíduo. No caso de uma eleição, deve se buscar o menor prejuízo ao coletivo, a sociedade e ao tecido social em si. A escolha deve ser pautada eticamente para minimizar danos e buscar promover a justiça e igualdade ao escolher a menos negativa das possibilidades.
Em relação ao cenário político atual no qual alguns candidatos derrotados sugerem anular voto ou se dizem neutros, é caro à toda população a consequência dessa opção de neutralidade, mesmo porque, ao meu ver, não votar não significa neutralidade política, pessoalmente você vai se identificar com um candidato qualquer que seja, você tem uma ideologia política determinada. Anular o voto é a anulação de um pensamento sobre a coletividade, é um “lavar as mãos”, como fez Pilatos, mesmo sabendo que Jesus era um revolucionário, preferiu se eximir de sua responsabilidade transferindo-a para o povo judeu numa tentativa de demonstrar indiferença.
Independente da anulação do voto ou do não comparecimento à urna, um candidato irá vencer e, pensando coletivamente, socialmente, a escolha do mal menor faz todo sentido pra que não se repita o que ocorreu em 2018 quando Jair Bolsonaro foi eleito com um número histórico de abstenções, brancos e nulos no 2º turno das eleições presidenciais.
Lutamos muito para construirmos a democracia. De 1964 até 1985, período da ditadura militar no Brasil, foram 21 anos de regime ditatorial que restringiu o direito ao voto, a participação popular e reprimiu violentamentetodos os movimentos de oposição. A democracia brasileira ainda é jovem e, pós golpe de 2016 quando houve o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, percebemos a sua fragilidade. O voto é uma prática que fortalece a democracia, um ato essencial para uma sociedade dialógica e que possibilite promover mudanças significativas na sociedade. Sabe-se que nem sempre os representantes do povo, em verdade, não o representam, mas se anular não produz mudança positiva alguma e muitas vezes permite a manutenção do status quo. Se queremos mudanças, pensando na coletividade, devemos lutar por elas, e o voto é nossa melhor arma no momentopara expurgar qualquer ameaça antidemocrática e autoritária.
Referencia:
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 56º ed. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e terra, 2018.
MENDES, Estevam Dedalus Pereira de Aguiar. Capitalismo, política e religião: testemunhas de Jeová e a revolta contra a modernidade. Revista Tese, Florianópolis, v. 20, n. 01, p.113-133, jan./out., 2023. Universidade Federal de Santa Catarina. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/emtese/article/view/94138/54481.