Opinião

Bolsonarismo: a máquina de moer verdades segue ativa

Uma das características do bolsonarismo é o apreço à mentira e o uso desta como arma política. O ataque ao sistema político e eleitoral, aos princípios e valores democráticos, como o estado de direito e a justiça social; a destruição da reputação de adversários e a guerra de narrativas fazem parte da ofensiva deste movimento reacionário, com forte atuação de uma milícia digital que segue alimentando o Gabinete do Ódio ou, pelo menos, reproduzindo suas estratégias de produção e compartilhamento de notícias fraudulentas, as chamadas fake news.

O MBL, Movimento Brasil Livre, que surge com a reorganização das direitas e efeito colateral da criminalização da política, que levanta a pauta anticorrupção – captada mais tarde pelo bolsonarismo – usou as redes sociais para fazer a seguinte postagem: “Lula aprova aborto e mudança de sexo”. Além de muito cinismo, a mensagem é carregada de maldade. Do jeito que foi escrita, confunde, gera desinformação e ódio. É a intenção dolosa por trás de conteúdo noticioso. Apelar para a emoção, gerar medo e torná-lo fio condutor de revolta é especialidade da casa bolsonarista.

Antes de falar mais sobre desinformação e preciso trazer a informação correta. Premeiro sobre aborto. Previsto pela legislação brasileira e garantido pelo Sistema Único de Saúde (SUS) em alguns casos, o aborto é permitido no Brasil quando a gravidez é resultado de estupro ou quando há risco de vida para a mãe (Art. 128, Lei nº 2.848/1940; Lei nº 9.605/1997). Uma terceia exceção: anencefalia, quando o feto apresenta uma malformação cerebral grave, incompatível com a vida (STF, 2012). Em 2016, a Primeira Turma do  STF  decidiu descriminalizar o aborto no primeiro trimestre da gravidez para resguardar os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, seu direito de escolha e de integridade física e psíquica.  Qual a novidade então? A saída do Brasil de um pacto internacional antiaborto e a revogação, por parte do Ministério da Saúde, de portaria de 2020 que dificultava a realização do aborto legal – um retrocesso ao direito da mulher garantido Lei – e, como consequência, a suspensão da regra que obrigava profissionais da saúde a comunicarem à polícia, mesmo sem o aval da mulher, os casos de violência sexual que levaram à interrupção da gestação, ou seja, mais um abuso, mais uma forma de violência. Importante destacar que ações tomadas pelo MS não modificam os critérios que regem o acesso ao procedimento.

Sobre mudança de sexo. Nesse caso específico, nada de novo. Apenas a reedição de notícia fraudulenta em uma tentativa de embaçar as denúncias de corrupção envolvendo a venda proibida de joias que integram patrimônio da União pelo governo Bolsonaro. Cabe destacar: cirurgias de redesigniação de sexo, transgenitalização, ou neofaloplastia são previstas legalmente no Brasil há 50 anos (Lei nº 6.015/1973), mas são vedadas para pessoas com menos de 18 anos. Até 2020, a idade mínima era de 21 anos, quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) definiu novas regras também para o início de terapias hormonais, possível, a partir de então, aos 16 anos. O Conselho Nacional de Saúde (CNS) defende que esse tratamento possa começar aos 14 anos e traz uma Resuloção com orientações estratégicas para o Plano Plurianual e para o Plano Nacional de Saúde. Essa recomendação foi tirada de contexto e atribuída ao governo para manipular o leitor. Uma ação planejada para confundir e enganar.

O ecossistema das notícias fraudulentas é vasto. Há o que a jornalista e professora britânica Claire Wardle chama de “matrix da desinformação”, que envolve falsa conexão, quando manchetes, legendas ou ilustração diferem do conteúdo da reportagem, do artigo ou da notícia; manipulação de contexto, quando a imagem é deliberadamente modificada para enganar o público; e falso contexto: quando o conteúdo é compartilhado com contextos adulterados ou alterados, caso da fake news compartilhada pelo MBL.

A filósofa alemã Hannah Arendt trata da mentira no ensaio “Verdade e Política” e teoriza sobre como ela é usada por líderes autoritários e transformada em “realidade” para influenciar pessoas, moldar a opinião pública e justificar suas ações. O texto é atualíssimo. Essa captura da verdade factual e sua substituição por notícias fraudulentas têm sido feita, com louvor, por meio das redes sociais pela extrema-direita no mundo. No Brasil, esta é a aposta do bolsonarismo que permanece, sem a coesão de antes mas ainda azeitado pelo ódio e pelo desprezo à democracia – como sempre. A publicação do MBL é mostra de que a ameaça permanece abastecida pela rede de mentiras. O antítodo passa pela política e pela sua valorização e seu papel construtivo. O oposto disso, ou seja, sua demonização, só nos trouxe recessão democrática,  indiferença ao valor da verdade e profundo retrocesso civilizatório.