Opinião

Qual é a política da antipolítica?

Por David Soares de Souza –

Para que não paire nenhuma dúvida: se você não gosta e nem discute política, possivelmente não está lendo este texto e, caso esteja, este texto não é contigo. Esta “não relação” com a política dá muito pano para a manga, mas são outros quinhentos e para outro momento. Este texto pretende discutir a política que está por trás da antipolítica. E, para fins didáticos, começaremos tratando de um fato que repercutiu bastante nos últimos dias: a defesa que a atriz Juliana Paes fez sobre o direito de não se posicionar politicamente.

Fazendo esta defesa a atriz dá a entender que existe uma “ditadura do posicionamento” determinando que todos e todas discutam, compreendam e façam política. Não, isto não acontece. Portanto, não se arrombam portas abertas! Discutir o direito ao silêncio seria, no mínimo, paradoxal. Porém, o problema acontece quando o “não posicionamento” reivindica um lugar no debate público na condição de posição política. Este é o nosso foco.

Há diversos formatos para este posicionamento, mas podemos listar os mais corriqueiros e que contam com suas devidas subdivisões: há os supostamente anárquicos que são contra todas as formas de poder, mas que não propõe nenhuma mudança nas relações de poder e o mundo pode ficar como está; há os que afirmam que todos os políticos são todos iguais, mas não conseguem formular três frases coerentes explicando esta afirmação; e há aqueles dizem que não têm ideologia, não são de esquerda ou direita, não perdem tempo com siglas e conceitos e que defendem sempre o que é melhor para a coletividade, desde que concordem com o que defende e almeja esta coletividade.

Quer parecer inteligente em diálogos rasos? Faça da política a nova Geni. Mas, se quiser parecer inteligentíssimo, com ares de analista político, então critique a tal da polarização, de preferência com adjetivos e palavras proparoxítonas. Aposto que o ápice de seu argumento será dizer que a polarização impede qualquer diálogo racional. Sabe o que mais? Se alguém pedir para você aprofundar melhor seus argumentos, as chances de cair em alguns dos modelos expostos no parágrafo anterior são gigantescas.

Mas, a polarização que você critica não é aquela eleição em formato de lapinha em provincianas disputas locais. Esta polarização você acompanha, formula algumas observações a respeito e é até possível que se envolva. A polarização que você critica é justamente aquela com projetos de sociedade antagônicos. Por exemplo: investir no SUS e comprar vacinas ou defender o uso de cloroquina. Defender o estado democrático de direito ou defender a volta da ditadura? Defender o apoio aos pequenos empresários para manutenção de seus negócios e o pagamento de auxilio emergencial para os trabalhadores ou uma agenda de retirada de direitos no Congresso Nacional?

Para você é preciso encontrar um ponto de diálogo, um meio termo entre a vida e a morte. E, quando alguém aponta a incongruência disto, você defenderá o direito de não se posicionar. Mais que isso: suas críticas contra a polarização não são destinadas ao polo que ora governa o país. Quando raramente o faz é quase em tom de conselho, quase confessando que estavam juntos até ontem. Aliás, facilmente poderemos verificar que as mesmas vozes que criticam a polarização ideológica de agora estavam jogando água no moinho do polo antipetista em 2018 e em períodos anteriores.

A antipolítica também é terreno fértil para outro tipo corriqueiro de despolitização, a centralidade das personalidades. Ignoram-se os sistemas político e partidário, correlação de força, composição de base eleitoral, conteúdo programático, entre outros fatores e passa-se a contar a história a partir das ações “dela” ou “dele”. É por isso que a antipolítica gosta de prestar atenção em outsiders.

Na política, os outsiders são aquelas lideranças que se estabelecem fora do sistema político ou partidário, sobretudo em períodos em que a atividade política fica mais desgastada. Invariavelmente, não representam uma mudança na forma de fazer política, mas expressam uma nova forma de ganhar peso político. Quem não se lembra da frase “não sou político, sou gestor” tão propagada por João Doria? Nesta mesma linha nunca nos falta a ingênua afirmação de que determinada pessoa, ocupando um cargo eletivo ou de confiança é “um nome técnico, não político”.

A antipolítica é um tipo de discurso político que reforça a ordem que diz combater. Estou entre aqueles que vêem neste fenômeno traços do conceito de bonarpartismo, apresentado por Karl Marx em “O 18 brumário de Luís Bonarparte”, uma vez que as lideranças deste tipo de política surgem nos momentos em que a classe dominante não consegue exercer sua hegemonia com seus quadros tradicionais e se encontra incapaz ou sem forças políticas para garantir a reprodução da ordem econômica.

Assim, verifica-se na prática uma recauchutagem política em defesa dos interesses econômicos dos mais ricos. A ação da antipolítica nunca ameaça a ordem econômica, pelo contrário. O discurso de que a política é suja e que é preciso uma força de fora para colocar a casa em ordem pode ser encontrado, em dada medida, já no tenentismo na década de 1920 e de forma mais explícita a partir do golpe de 1964, no lavajatismo em meados da década passada e no “contra tudo isso que está aí”, mantra vazio do bolsonarismo.

A antipolítica é o signo dos políticos que não se apresentam como políticos. Ela é o discurso de cabos, soldados, coronéis, delegados, pastores, bispos, apresentadores de rádio e TV, entre diversas outras figuras que passaram a fazer política como se não estivessem fazendo. Um dos antídotos contra a despolitização é chamar as coisas pelos nomes, como ensinou o rapper Emicida ao apresentador Luciano Huck, na última semana. Por isso, se tiver interesse, pesquise como votam no Congresso as lideranças da antipolítica. Sempre a favor da burguesia e contra os trabalhadores.

Em síntese, a antipolítica é uma política de direita. É um sintoma de crises de representatividade no sistema político. A solução passa por mais e não por menos democracia. Passa organização coletiva e transparência quanto aos interesses envolvidos na formação da agenda do debate público. Passa por redução dos custos de participação e ampliação da capacidade de controle social e participação. Passa por incluir e visibilizar as demandas reprimidas e recorrentes.

A antipolítica é a política da despolitização e não implica na ausência de identidade política, mas que outras identidades passarão a ocupar espaço na intervenção pública. Não à toa esta despolitização ajuda a explicar a força das igrejas neopentecostais, na medida em que os fieis não se identificam como trabalhadores, rejeitando a consciência de classe, ou ao menos cidadãos, valorizando a laicidade e/ou o estado democrático de direito.

A antipolítica implica em manutenção do status quo e por isso é tão nociva à classe trabalhadora. Enquanto o PIB cresceu, a renda média dos trabalhadores brasileiros caiu, a inflação está voltando diminuindo o poder compra dos salários e o desemprego bate recorde. A neutralidade diante de qualquer situação de injustiça ou desigualdade implica em ficar ao lado do mais forte. Por isso, em situações inconciliáveis, quem não se posiciona, já se posicionou. A base da pirâmide social precisa ter consciência de si e se colocar em movimento na defesa de seus interesses, essa é a política que mais assusta e que foi chamada por Juliana Paes de “delírio comunista”.

A política não precisa ser toda sua vida. Mas, isso não quer dizer que sua vida deve ignorar a política. Por isso, terminamos com um trecho de uma famosa entrevista de Nina Simone na década de 1970: “Escolhi refletir o tempo e as situações em que me encontro. Para mim, isso é o meu dever, e neste momento crucial de nossas vidas, quando tudo é tão desesperador, quando cada dia é uma questão de sobrevivência, é impossível se envolver. (…) Como ser artista e não refletir a época? Essa para mim é a definição de artista.”