Opinião

Mariana Ferrer: depois do estupro, o abuso

Não faz muito tempo, foi em 2018, Eros Grau, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF) escreveu: “juízes interpretam e aplicam a Constituição e as leis, não fazem justiça”. Trocando em miúdos, resta-nos a seguinte sentença: porque as leis nem sempre são justas, a justiça nem sempre se cumpre. É uma visão positivista. Exclui o papel do juiz na interpretação e na aplicação dessa mesma lei como se este não fosse senhor de sua decisão. É um grande equívoco, ou uma grande sacada uma vez que exime intencionalmente o julgador das consequências de suas ações.

Mas não existe ação sem reação, não é mesmo? Uma outra lei, a da física, já nos alerta pra isso. Sendo assim, vamos ao caso concreto: os estupros de Mariana Ferrer. Falo no plural porque não bastou a violência física. Somou-se a ela a violência psicológica, tortura e humilhação. Em um tribunal, a blogueira buscou a reparação de um crime praticado contra ela, encontrou inquisição, o fogo do algoz e a omissão que feriu de morte a função precípua do judiciário: defender os direitos do cidadão. Uma heresia à norma constitucional.

Mariana Ferrer cometeu crime, afinal? A blogueira acusou o empresário André de Camargo Aranha de estupro. Em dezembro de 2018, aos 21 anos, ela diz que foi abusada por ele. Era virgem. A perícia encontrou sêmen e sangue na roupa de Mariana. Não havia evidências de consumo de álcool ou drogas. A jovem, no entanto, garante: foi violentada.

No ordenamento jurídico brasileiro, estupro é crime doloso. O artigo 2013 do Código Penal (12.015/2009) define estupro como ato de “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Pena: reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos”. No julgamento do caso, no entanto, o acusado foi inocentado. A palavra de Mariana foi desprezada.

Para o juiz faltaram provas suficientes para a comprovação do crime. Na dúvida, o réu foi inocentado, ou seja, in dubio por reo. Para o MP de Santa Catarina, pasmem, houve uma espécie de “estupro culposo” porque o acusado não tinha intenção de estuprar.

A repercussão do caso foi imediata. Gilmar Mendes, ministro do STF, se manifestou: “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de Justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”.

O Conselho Nacional de Justiça abriu procedimento para apurar a conduta do juiz Rudson Marcos, da 3ª Vara Criminal de Florianópolis. A OAB convocou advogado para que ele possa se explicar.  Contudo, pelo que foi exposto – e as imagens da audiência falam por si mesmas – explicação só não basta diante da omissão e do achaque promovido contra a vítima. Mariana Ferrer foi sistematicamente abusada: pelo estuprador, pelo advogado que a  submeteu a tratamento vexatório subvertendo a ordem das coisas e culpando a vítima pelo estupro que sofreu. Abusada também pelos que deveriam fazer cessar os ataques sucessivos e nada fizeram.

O que houve no Tribunal de Santa Catarina foi um show de horrores e a perpetração de um machismo estrutural que fere e mata. De acordo com o Anuário de Segurança Pública, 66 mil mulheres foram estupradas no Brasil em 2018. Foi o maior índice registrado desde 2007, quando o levantamento começou a ser feito. Em 2020, 631 feminicídios foram registrados. Estupro, assassinato… São crimes de ódio contra mulheres pela condição de gênero. Mulheres silenciadas, amordaçadas por homens que as diminuem e massacram exatamente como fez o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho. Intolerável.

Quando uma voz que busca justiça é silenciada e criminalizada nos tribunais, todas as outras se calam.  Diante do mal feito, o reparo é necessário e urgente. Não só por Mariana, mas por todas as mulheres vítimas da estupidez e do patriarcado.