Trabalho escravo no Brasil, ainda
Uma matéria publicada no jornal o Estado de S. Paulo no dia 30 de janeiro de 2022 mostra com base nos dados consolidados pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, que o número de operações da Polícia Federal para resgatar trabalhadores em condições análogas à escravidão aumentou 470% em 2021 em relação a 2020 e também houve um crescimento no número de investigações: foram abertos 306 inquéritos sobre trabalho escravo em 2021, um aumento de 30% em relação a 2020.
Segundo dados obtidos pela Agência Senado, entre 2016 e 2020, o Ministério Público do Trabalho (MPT) recebeu mais de seis mil denúncias relacionadas ao trabalho escravo, aliciamento e tráfico de trabalhadores no Brasil e que só em 2020, mais de 900 trabalhadores foram resgatados de situações análogas ao trabalho escravo.
Em 2021, dados do Ministério do Trabalho e Previdência indicam que foram libertadas 1.937 pessoas em condições de trabalho análogo à escravidão e que tem crescido: foi à maior alta desde 2013 (naquele ano foram 2.808) e um aumento de 106% em relação a 2020. Destes 89% trabalhavam em áreas rurais e 310 pessoas só na produção de café (Segundo a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) da Secretaria de Inspeção do Trabalho a atividade com maior número de crianças e adolescentes resgatados foi a produção de café), mas também foram encontrados no cultivo de fumo, soja, cana e laranja, na fabricação de farinha de mandioca e no cultivo e extração de florestas nativas. Trabalhadores em condições análogas à escravidão têm sido encontrados em fazendas de gado (A pecuária bovina é a principal atividade econômica flagrada com trabalho escravo desde 1995), algodão, frutas, erva-mate, batatas, cebola, sisal, na produção de carvão, e também em siderurgia, na construção civil e em oficinas de costura, entre outros lugares.
Em relação aos resgates em 2021, foi resultado de 443 operações feitas pelos grupos especiais, coordenados por auditores fiscais do trabalho em parceria com o Ministério Público do Trabalho, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal, o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União (mais dados podem ser obtidos no Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil, organizado pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do ministério). E Minas Gerais foi o estado que teve maior número de casos registrados: 420 pessoas.
Os dados relativos a 2021 mostram que depois de quase 134 anos após a abolição formal da escravidão no Brasil (maio de 1888) continua a haver trabalhos escravo ou trabalho em condições análogas à escravidão.
E os governos, historicamente, o que tem feito? Só em 1995, no governo de Fernando Henrique Cardoso é que houve o reconhecimento oficial por parte do Estado brasileiro da existência do trabalho escravo, portanto mais de um século depois do fim oficial da escravidão. Foi reconhecido inclusive perante a Organização Mundial do Trabalho (OIT), tendo sido criado o Grupo Especial de Fiscalização de Trabalho Escravo, uma Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo (Contrae) e formadas equipes coordenadas pela Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e do Emprego.
E entre 1995 até o final de 2021 os dados oficiais indicam que mais de 57 mil pessoas foram resgatadas em condições análogas à escravidão.
A tipificação de crime de escravidão no Brasil só ocorreu em 1940, 51 anos depois de proclamada a República (1889), com a aprovação do Código Civil, que de acordo com o artigo 149 define quatro condições de escravidão contemporânea: trabalho forçado, servidão por dívida, condições degradantes e jornada exaustiva, que coloca em risco sua saúde e vida.
Mas é só em 2003 (dia 11 de dezembro), 63 anos depois, é que foi sancionada uma lei (No 10.803) que alterou o art. 149 do Código Penal, para estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que se configura condição análoga à de escravo, com penas de dois a cinco anos, além de multa (aumentada se o crime for cometido contra crianças ou adolescentes). Neste ano, inicio do governo Lula, foi aprovado o 1º Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo e elaboradas 76 medidas, entre elas a do apoio a uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) prevendo o confisco de terras onde fosse encontrado trabalho escravo, suspensão de crédito agrícola dos que forem condenados e uma política de reinserção social de egressos da escravidão.
E o que foi feito desde então quando se constata a continuidade de trabalho em condições análogas à escravidão? Não passou de (boas) intenções?
E aqui, entra o papel do Congresso Nacional. O que tem feito? Desde muitos anos o tema tem sido debatido, projetos apresentados, mas não conseguiu, ao longo do tempo, impedir à existência de trabalho escravo e a punição dos seus responsáveis.
Mais recentemente com a aprovação da Reforma Trabalhista em 2017, um retrocesso em relação aos direitos trabalhistas, a bancada ruralista tenta mudar as leis especialmente relativas ao trabalhador (a) rural, que ficaram fora da reforma, tentando restringir o poder da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho. Um dos projetos na Câmara dos Deputados de um deputado da Bancada Ruralista, entre outros exemplos, estabelecia que as empresas não pagassem seus funcionários apenas com salário, mas também mediante “remuneração de qualquer espécie“, como moradia e alimentação, o que foi vista por seus críticos, incluindo diversos sindicatos, como a intenção de querer oficializar a escravidão, permitindo que a jornada diária de trabalho pudesse ser de até 12 horas por “motivos de força maior”, a substituição do repouso semanal por um período contínuo, com até 18 dias seguidos, e ainda autorizando a venda integral das férias.
O governo Bolsonaro fez sua parte em defesa desses interesses com a criação, através de uma Medida Provisória, dos programas Priore (Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego) e Requiq (Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva), e autorizava que as empresas contratassem jovens de 18 a 29 anos, ou pessoas com mais de 55 anos e desempregados há mais de dois anos, sem vínculo trabalhista, férias, FGTS ou 13° salário, e com baixos salários (Em relação aos com mais de 55 anos, o contrato poderia ser de até 24 meses, com jornada de até 44 horas semanais, para até 25% do total de empregados da empresa, com salário mensal de até dois salários mínimos).
Pela MP, o acesso à Justiça gratuita se tornava mais limitado e o pagamento de horas extras, fixado constitucionalmente em pelo menos 50%, seria reduzido para 20% da hora-salário.
E entre os aspectos mais danosos da MP estava à descaracterização do trabalho escravo ao definir a habitação, roupa e outros itens “in natura” como pagamentos de salário, descaracterizando assim o que configura trabalho escravo nas fiscalizações do Ministério do Trabalho e legalizando uma prática comum encontradas em locais onde pessoas têm sido resgatadas da exploração em condições aviltantes em troca de comida, roupas e alojamentos insalubres. Em síntese, a MP autorizava o trabalho análogo à escravidão.
E a Câmara dos Deputados também fez a parte dela ao aprovar, no dia 10 de agosto de 2021, a MP que estabelecia a reintrodução do programa de redução salarial e suspensão de contratos de trabalho criado em 2020, no início da pandemia, ao qual foram adicionadas emendas que mudavam a legislação trabalhista aprovada em 2017. A MP renovava a extinta ‘Carteira Verde e Amarela’ proposta pelo governo, que foi aprovada no Congresso e voltou à análise em 2021, ano em que o desemprego cresceu e o trabalho sem carteira assinada teve um aumento de cinco milhões de pessoas.
No entanto, no dia 01 de setembro de 2021 , a proposta do governo e aprovada na Câmara dos Deputados, foi derrotada: o Senado rejeitou a MP que permitia redução salarial e contratação fora das regras da CLT. A Medida Provisória do Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda (MP 1045/2021) chamada de “nova ‘reforma’ trabalhista” retirava uma série de direitos e permitia redução salarial e condições de contratação aviltantes. Foi rejeitada por 47 votos contra 27.
Em 2022, o debate continua no Congresso, com a apresentação de propostas legislativas sobre o tema. No Senado, há o PL 5970/2019, de iniciativa do Senador Randolphe Rodrigues que prevê a regulamentação da expropriação de propriedades urbanas e rurais em que for constatada a exploração de trabalho em condições análogas às de escravo. O PL se baseia no que está previsto no art. 243 da Constituição Federal (e com redação dada pela Emenda Constitucional nº 81, de 2014) que diz: “As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. (O projeto define que são passíveis de expropriação imóveis urbanos e rurais onde for explorada mão-de-obra análoga à escrava, aplicada após o trânsito em julgado de sentença penal condenatória).
O fato é que desde o governo de Michel Temer, em 2016, depois do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, continuando no governo de Bolsonaro, foram várias iniciativas para dificultar o combate ao trabalho escravo e na prática, servir de estímulo à sua continuidade. No governo Temer tentou reduzir a definição de trabalho forçado à violação do “livre ir e vir”. A proposta foi rejeitada pelo STF atendendo a uma ação judicial, estabelecendo que as regulamentações de servidão por dívida, exaustão por longas jornadas de trabalho e condições de trabalho degradantes continuam a serem consideradas condições análogas à escravidão.
No Brasil, a escravidão foi uma prática recorrente oficial durante mais de 300 anos, com índios e principalmente com negros, até praticamente o fim do Império, mas como os dados mostram, continua existindo. Não são mais africanos negros e seus descendentes, mas as vítimas da miséria, de um Estado e governos a serviço de uma elite perversa, que não cria mecanismos eficazes para a sua erradicação. Escravidão expressa em dívidas impagáveis, trabalhos desumanos e degradantes, além de ameaças, coerção física etc. A permanência de trabalho análogo à escravidão no Brasil – e no mundo, porque segundo a Walk Free Fundation, que tem feito campanhas para erradicar o trabalho escravo, em torno de 40 milhões de pessoas no mundo estão submetidas a alguma forma de escravidão moderna – não pode e nem deve continuar existindo porque é uma afronta a dignidade humana e aos princípios do Estado Democrático de Direito.
A permanência do trabalho escravo mostra a importância de ações eficazes para seu combate. O que é divulgado são resultados das ações de fiscalização, mas continua havendo profundos entraves para a sua erradicação e ainda há quem queira retroceder. Tem de haver não apenas o combate, mas prevenção, e não apenas resgates, mas assistência (e indenização) dos trabalhadores. É dever de um Estado democrático incluir medidas de caráter jurídico, político, cultural e administrativo que assegurem que as suas violações sejam consideradas crimes (imprescritíveis), assim como a obrigação de indenizar vítimas por suas conseqüências. E é esse Estado que devemos defender e lutar contra todas as formas de retrocesso.