Quando Deus era mulher
Respeite esse corpo que dele sai gente
Que sangra sem morrer
Respeite esse corpo, ele não lhe pertence
Feminino corpo vai prevalecer
(Elza Soares)
As políticas públicas para as mulheres brasileiras, historicamente foram criadas e aplicadas por homens que trazem consigo toda bagagem social do patriarcado hegemônico. A luta das mulheres pelas ocupações dos espaços de poder e pelo reconhecimento de direitos precisam ser viabilizadas através de políticas públicas de gênero, no entanto, para fortalecer os espaços é necessário que as mulheres ocupem espaços conscientes de seu papel social, cultural, econômico e político. Pensando de tal forma, trago na coluna de hoje, uma pequena reflexão a cerca do primeiro capítulo do livro Quando Deus Era Mulher.
O modelo de construção de uma sociedade patriarcal violenta e silencia todos os dias as mulheres desde há muitos séculos. “O silenciamento feminino foi tão bem articulado que muitos consideram como mulheres agradáveis aquelas que falam pouco e, preferencialmente, em voz baixa” (Ceribelli, 2022, p. IX).
O patriarcado é um pacto de manutenção do status quo masculino, “se trata de um conjunto de práticas instituído há milênios para manter as mulheres sob o domínio masculino” (Ceribelli, 2022, p. X), estas práticas são difundidas social e culturalmente inclusive entre mulheres para que elas não se vejam como mulheres fortes e independentes, afinal, como diz Merlin Stone (2022, p. 15):
O que mais podemos esperar em uma sociedade que durante séculos ensinou a crianças, meninas e meninos, que uma deidade MASCULINA criou o universo e tudo o que ele contém, criou o HOMEM à sua imagem e semelhança, e depois, como quem pensa melhor, criou a mulher para obedientemente ajudar esse homem em seus projetos? Como, de muitas maneiras, a imagem de Eva, criada para seu marido e a partir dele, a mulher que supostamente desencadeou a ruina da humanidade, veio a se tornar a imagem de todas as mulheres?
O protagonismo histórico feminino, anterior ao cristianismo e presente nas antigas civilizações, foi pouco a pouco sendo substituído pela figura da mulher pecadora, aquela que condenou a vida na terra ao pecado, a Eva da tradição judaico-cristã. Na idade média as mulheres foram condenadas a morte na fogueira, além de pecadoras como Eva, se tornaram bruxas por desafiar as hierarquias socialmente ao voltarem-se aos saberes ancestrais. E assim, as mulheres foram silenciadas, perseguidas em contínua supressão de suas identidades.
Nas religiões que precederam o judaísmo, o cristianismo e o maometismo, haviam deusas, deidades sagradas cultuadas com devoção por homens e mulheres, eram matriarcas da criação do mundo. Os achados arqueológicos foram, através do tempo, cuidadosamente apagados e substituídos por figuras masculinas conforme pode-se perceber inclusive no velho testamento:
Deveis destruir completamente todos os lugares em que as nações ocupadas por vós serviram aos deuses delas, nas montanhas, nas colinas, sob qualquer árvore frondosa, deveis pôr abaixo seus altares, esmagar seus pilares, cortar seus bastões sagrados, atear fogo às imagens esculpidas de seus deuses e fazer desaparecer sus nomes do lugar (Deuterenômio 12:2,3 apud Stone, 2022, p. 19).
Essa atitude notadamente de intolerância religiosa, de apagamento histórico de uma época, denota que muitas informações preciosas daquele período são irrecuperáveis, inclusive sobre as relações de subalternidade, a constituição social e religiosa e, obviamente, a existência das narrativas sobre as deusas. As religiões cujas histórias foram apagadas passaram a se chamar, pelos narradores da história, de “religiões pagãs” e os pagãos foram criminalizados e perseguidos pelos imperadores e reis, principalmente nas cidades de Antióquia e Alexandria, cujos templos foram “destruídos, fechados ou convertidos em igrejas cristãs (Stone, 2022, p. 19).
Apesar da tentativa de apagamento generalizado das deidades femininas e do papel da mulher nas sociedades antigas, restaram fragmentos importantes. Não há história no mundo que seja totalmente apagada quando se buscam as informações verdadeiras sobre a história, por mais que se tente deturpar, distorcer ou apagá-las. Exatamente por isso, após escavações históricas e a partir da participação de mulheres nesses processos ou de homens que ajudaram a quebrar as narrativas misóginas de acadêmicos e eruditos de séculos anteriores, foram encontradas e não negligenciadas uma grande quantidade de
estatuetas da Deusa encontradas em escavações do Neolítico e primeiros períodos históricos do Oriente Próximo e Médio sugerem que podem ter sido evidentes atributos femininos de praticamente todas as estatuas que incomodaram os defensores da deidade masculina. Muitos “ídolos pagãos” tinham seios (Stone, 2022, p. 19).
Cabe destacar que, em todo processo histórico de produções acadêmicas passadas, sempre houve uma “predominância esmagadora de eruditos do sexo masculino, e o fato de que quase todos os peritos em arqueologia, história e teologia de ambos os sexos cresceram em sociedades que adotam as religiões de orientação masculina (judaísmo ou cristianismo)” (Stone, 2022, p. 20).
Fica evidente que as distorções ocorridas ao longo da história, escrita por homens eurocentrados têm um viés misógino e claramente religioso nesse sentido, afinal, “homens gozam da grande vantagem de ter um deus endossando o código que eles escrevem; e como o homem exerce autoridade soberana sobre as mulheres, é especialmente afortunado que sua autoridade tenha sido investida nele pelo Ser Supremo” (Stone, 2022, p. 13 apud Beauvoir, 1970).
Esses distorções e apagamentos são verdadeiras aberrações na história. Nelas, as deidades femininas passam de deusas, criadoras do universo, matriarcas, guerreiras, curadoras, provedoras da vida para mulheres lascivas, pecadoras, bruxas, loucas ou desequilibradas, impróprias ou agressivas, “enquanto as deidades masculinas que estupravam ou seduziam mulheres e ninfas nas lendas eram descritas como ‘brincalhões’ e até admiravelmente ‘viris’” (Stone, 2022, p. 21).
A materialidade do pensamento e da construção histórica do pensamento mostram que os historiadores, antropólogos, arqueólogos etc, imprimiram em suas narrativas os seus costumes, sua moral, sua cultura patriarcal e interpretaram seus objetos de estudo conforme sua ótica, e assim “passaram sua interpretação equivocada para o resto do mundo” (Stone, 2022, p. 24). Outros profissionais que ajudaram nos apagamentos são, sem dúvida, os tradutores e os linguistas que distorceram questões de gênero para beneficiar o sistema, até porque eles faziam parte do sistema. Stone (2022, p. 21) afirma:
Ao prestar mais atenção à semântica, insinuações linguísticas e nuances de significado, observei que a palavra “culto”, cujas conotações sugerem algo menos refinado ou civilizado do que “religião”, era quase sempre aplicada as deidades femininas, não por ministros da igreja, mas por arqueólogos e historiados supostamente mais objetivos. Os rituais associados ao judaico-cristão Iavé (Jeová) foram sempre descritos respeitosamente por esses mesmos estudiosos como “religião”. Foi reparando que a palavra “Deus”, e até “Ele” sempre começavam com letra maiúscula, enquanto “rainha do céu”, “deusa”, e “ela” eram escritas em minúsculas, que decidi tentar outra abordagem, observando como essas mudanças aparentemente pequenas afetavam, com sutileza, o significado bem como o impacto emocional (Stone, 2022, p. 21).
Fica, portanto, evidente a importância da representatividade e das lutas das mulheres para ocupar espaços de poder que permitam construir as próprias narrativas e recontar a história: “A imagem de Eva não é nossa imagem de mulher” (Stone, 2022, p. 27).
Os fatos, na medida em que são descobertos ou revelados, mostram o quanto é necessário revisitar e recontar as histórias narradas sobre o viés masculino, androcêntrico e eurocêntrico. Recontar ajudará na mudança necessária dos paradigmas até aqui estabelecidos. Mas as mudanças de paradigmas só ocorrem a partir da representatividade através de mulheres autônomas, empoderadas e que tenham consciência de classe e de gênero. Mulheres protagonistas de sua própria história e que se tornam mulheres que a história do patriarcado não conseguiu apagar.
Não estou sugerindo o retorno ou ressurgimento da antiga religião feminina. Como Sheila Collins escreve: “Enquanto mulheres, nossa esperança de satisfação repousa no presente e no futuro, e não em um reluzente passado mítico”. Eu mantenho a esperança, porém, de que tomar consciência hoje de uma antiga e amplamente difundida veneração a uma deidade feminina, sábia Criadora do Universo e de toda a vida e civilização, pode ser útil para atravessar as muitas imagens, estereótipos, costumes e leis opressivas, falsamente estabelecidas e patriarcais, que foram desenvolvidas como reações diretas à adoração da Deusa e ditadas pelos líderes das religiões masculinas (Stone, 2022, p. 26).
As pessoas “são criadas e programadas segundo as atuais religiões patriarcais” (Stone, 2022, p. 29) e para não se conectarem a sua ancestralidade matriarcal, ao passado imemorial que sobrevive de alguma forma no DNA humano. Essa conexão acontece quando se percebe o mundo e no mundo. Quando se percebem nuances, fagulhas do fogo eterno que o homem não conseguiu extinguir. Uma hora, quando se busca, o despertar acontece: “Percebi que em algum ponto da minha vida me disseram – e eu aceitei – o Sol, grande e poderoso, era naturalmente adorado como homem, enquanto a Lua, discreta, símbolo delicado de sentimento e amor, sempre tinha sido reverenciada como mulher” (Stone, 2022, p. 29-30). Essa descoberta precede outras que desanuviam a realidade ocultada propositalmente das mulheres e deusas outrora cultuadas, como as deidades da “Suméria, Babilônia, Egito, África, Austrália e China” (Stone, 2022, p. 30).
Os mitos e as lendas têm funções sociais específicas, despertando a consciência para o mistério da existência, apresentando uma imagem compreensível do universo e impondo uma ordem moral e de conformação do indivíduo (Campbell, 2018). Nessa perspectiva, desde a infância eles são contados e recontados de modo a regular a ética e os valores sociais individuais e coletivos, definindo o que é bom ou mau, certo ou errado. Distorcer os mitos das deidades femininas foi o modo encontrado pelo patriarcado para subjugar a partir dos apagamentos e reinterpretações, ressignificações e até mesmo a reinvenções. De tal maneira, “os componentes trazidos de qualquer tempo passado para o presente, ou de uma cultura para outra, deixam seus valores no umbral cultural e dali em diante ou tornam-se meras curiosidades ou passam por uma transformação mediante um processo de confusão criativa” (Campbell, 2018, p. 85). Essas transformações e ressignificações mitológicas tanto influenciam como são influenciadas pelo contexto político e social, tendo em vista que a cultura é alimentada através dessas perspectivas, formando novas concepções ou ressignificando antigas tradições de cunho mítico ou religioso que moldam político-socialmente os sujeitos.
Assim como Campbell (2018), Merlin Stone (2022, p. 32) descobriu o poder dos mitos em relação ao sujeito social e ao coletivo político:
À medida que eu refletia acerca do poder do mito, ficava mais difícil evitar o questionamento sobre os efeitos que a influência dos mitos relacionados às religiões com deidades masculinas tiveram sobre minha própria concepção do significado de ter nascido mulher, outra Eva, a progenitora da minha fé na infância.
Referências:
BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência vivida. São Paulo: Difusão europeia do livro, 1970.
STONE, Merlin. Quando Deus era mulher. São Paulo: Goya, 2022.
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: Mitologia Criativa, Vol. 4. 2 ª ed. São Paulo: Palas Athena, 2018.