Presidencialismo de coalizão ou de cooptação?

A eleição presidencial de outubro de 2018, com a vitória eleitoral da extrema-direita foi o fim de um padrão de disputa pela presidência da República entre PT e PSDB que ocorria desde a eleição de 1994 (o PSDB com dois governos (1995-2002) e o PT com quatro (sendo que o governo de Dilma Rousseff não chegou ao fim, com o golpe midiático-jurídico-parlamentar em 2016).

No curso da campanha eleitoral de 2018, uma das promessas do então candidato era a recusa em governar de acordo com o modelo institucional vigente de até então, chamado de presidencialismo de coalizão, construído na base do “toma lá, dá cá”, considerado por ele como espúrio, com suas (inevitáveis) práticas de clientelismo e corrupção.

A tentativa inicial foi a de governar sem articulação com o Congresso Nacional, embora com uma base de apoio construída na campanha eleitoral. Mas diferente do que caracterizou os governos anteriores, desde o fim do regime militar e o início dos governos civis, constituídos com o que Sérgio Abranches definiu como presidencialismo de coalizão (Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34) no qual mostra, entre outros aspectos que desde o início dos governos civis, com José Sarney (1985-1989) as coalizões foram fundamentais para garantir a governabilidade. E basicamente porque os partidos dos presidentes eleitos não tinham maioria no Congresso Nacional. 

Um dos argumentos do autor é que esse modelo, por ser baseado em negociações com vários partidos, com demandas por verbas, cargos etc., se por um lado garante as condições para governabilidade, por outro tem seus custos, levando muitas vezes ao presidente da República se tornar refém dessa “base aliada” e quando ocorre uma crise, com a saída desses partidos, o impeachment é inevitável, como ocorreu em 1992 com Fernando Collor e Dilma Rousseff em 2016.

No entanto, nem todos consideram que as crises são inerentes ao presidencialismo de coalizão, como Fernando Limongi e Argelina Figueiredo que em um artigo publicado em 2017 (“A crise atual e o debate institucional” – CEBRAP, n.36) ao analisarem a crise política que levou ao impeachment de Dilma Rousseff afirmam que naquele momento “a crise reabriu o debate institucional, levando um retorno às teses que vêem na combinação entre presidencialismo e multipartidarismo a raiz de todas as crises políticas experimentadas pelo país”. O artigo critica essa interpretação “retomando a produção acadêmica dos últimos anos que aponta para a capacidade do sistema brasileiro em produzir decisões (…) em governos de coalizão, mais do que uma relação vertical de conflito entre Executivo e Legislativo, observa-se uma relação horizontal de barganha e cooperação entre o Executivo e os membros da coalizão”.

Salientam que o termo (presidencialismo de coalizão, usado por Sergio Abranches “ganhou elasticidade e plasticidade próprias aos rótulos que passam a ser aplicados para caracterizar realidades complexas e dinâmicas” e que a conotação  é claramente negativa “visando descrever uma realidade anômala e instável, quando não inviável, em razão, fundamentalmente, do fato de a coalizão carecer de bases partidárias” e que  para os que criticam o presidencialismo de coalizão, esta se dá em função da fragilidade dos partidos políticos que é uma das dificuldades à formação de uma base de sustentação consistente ao presidente da República.

Nesse sentido, creio que os argumentos que se fundamentam na fragilidade (histórica) dos partidos políticos no Brasil, nos parece correta e a questão é como compor uma base de apoio, com partidos fracos, a maioria  são o que podemos chamar, com propriedade, de “legendas de aluguel”, (partidos com donos e sem participação dos seus filiados nos processos de decisão), em um dos parlamentos mais fragmentados do mundo. Desde a primeira eleição direta para presidente da República, em 1989, são muitos partidos que integram o Congresso Nacional. Em 1994 eram 21 partidos, em 1998, 20, em 2002, 19, em 2006, 21, em 2010, 22 e aumentou em 2014 para 28 e em 2018 para 30. 

Como garantir a governabilidade tendo de se compor com muitos partidos, muitas vezes sem qualquer afinidade programática e/ou ideológica? No início de 2019, quando Bolsonaro assumiu a presidência da República, a opção foi a de não formar uma ampla coalizão, apelando para a base de apoio fora do parlamento, através das redes sociais. O que ocorreu então foi de, ao não querer negociar com os parlamentares e partidos, levou ao que o cientista político Sergio Abranches chamou de “protagonismo retaliatório do parlamento”, e que em confronto com instituições e práticas que garantiram a governabilidade na redemocratização, o presidente seguia no “arriscado caminho limítrofe ao autoritarismo”. 

Ao optar pela confrontação e recusar “o enquadramento institucional do presidencialismo de coalizão”, teve sucessivas derrotas no Congresso Nacional justamente num “período em que, normalmente, o presidente tem mais força de atração e convencimento”, que são os seis meses iniciais. Mas em vez de conciliação e composição de maioria, houve “uma ruidosa e desajuizada escalada de hostilidades entre o Planalto e o Congresso”. Hostilidade também em relação à imprensa e ao judiciário, em particular ao Supremo Tribunal Federal.

No entanto, um balanço de seis meses do governo, completado em junho de 2019, mostra que não tinha havido um rompimento com o presidencialismo de coalizão. Uma matéria publicada no jornal Folha de S. Paulo (dia 1 julho de 2019) intitulada “Contra mote de campanha, Bolsonaro mantém troca de favores com Congresso”, Ranier Bragon, afirma que se “o presidente foi eleito impulsionado pela onda antissistema e com a promessa de acabar com o chamado “toma lá dá cá”, o meio de obtenção de governabilidade adotado até então, os primeiros seis meses de gestão mostram que, apesar de algumas mudanças, o modelo continua sendo praticado. O governo abre o cofre em busca do apoio que necessita”. E dá alguns dados que fundamentam o argumento.

No Brasil, a Constituição de 1988 garante ao presidente da República um expressivo poder de agenda, como a iniciativa legislativa preferencial, a determinação da tramitação em urgência de seus projetos, a exclusividade de iniciativa em matérias orçamentárias, e ainda legislar por decretos e medidas provisórias. Entretanto,  ao optar pelo confronto com o Congresso Nacional, as consequências foram várias  derrotas em votações de seu interesse, como o cancelamento dos decretos sobre posse e porte de armas e a devolução pelo presidente do Senado de uma Medida Provisória pela qual se pretendia restabelecer a transferência da FUNAI e da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, que já havia sido rejeitada pelo Congresso em maio de 2019. O argumento foi simples: tinha sido aprovada uma lei que proíbia a reedição de Medida Provisória sobre matéria rejeitada pelo Congresso na mesma legislatura. 

Com as dificuldades em relação ao Congresso, em permanentes conflitos, inclusive com integrantes de sua então base aliada, expressa na saída do partido que o elegeu e dissidências de outros partidos que também o ajudou a se eleger, além de alguns militares (generais) que ocupavam cargos relevantes no Executivo, o governo percebeu que, ou implantava uma ditadura, fechando o Congresso e governando sem partidos ou na impossibilidade, como ocorreu, teria de se compor com os partidos e construir uma base de apoio, e isso ficou evidente na sua adesão ao chamado Centrão (que historicamente, composto por vários partidos, dão sustentação a qualquer governo, desde que atenda aos interesses de seus integrantes – partidos e parlamentares).

Compor maioria no Congresso não é apenas distribuir verbas e cargos a aliados: exige negociações e habilidade política. As concessões são inevitáveis, mas com o risco de ficar refém do parlamento, como ocorreu com o governo (golpista) de Michel Temer, que se livrou, por duas vezes, da abertura de um processo de impeachment justamente por ter sabido compor uma maioria, com os procedimentos habituais (concessões de verbas, cargos etc.). 

 

Para manter uma coalizão é preciso ceder, ou seja, o presidente tem que ter não apenas a disposição como a capacidade de formar uma coalizão consistente, de construir uma agenda, respeitando as diferenças e pluralidade de interesses e ao fazer isso, tem de necessariamente compartilhar com o congresso “parte dos bônus decorrentes desse poder” como diz Abranches.

Ao analisar os dilemas do presidencialismo de coalizão com a eleição de Bolsonaro Abranches afirma que, até a adesão ao Centrão, havia um quadro de complicações que “se completava com um presidente de mentalidade autoritária, arroubos populista, politicamente fraco, e que usou os poderes presidenciais com imperícia se rebelando contra as decisões que lhes foram contrárias”.

Com o Centrão os processos de concessões se ampliam e nesse sentido deixou de ser o presidencialismo de confrontação para se tornar um presidencialismo de cooptação. O presidente se tornou não  apenas aliado como membro formal do grupo, ao se filiar ao PL e os desdobramentos são mais concessões em troca de apoio :  verbas como as emendas de relator e o orçamento secreto que dispõe de 16 bilhões de reais para atender as demandas de parlamentares, sob o controle de um aliado fundamental nesse processo: o presidente da Câmara dos Deputados. Como disse Abranches, se o presidente até então se dedicava com entusiasmo apenas à pequena política, aos temas miúdos que praticou a vida toda como parlamentar “sem nunca estar no centro dos grandes debates constitucionais e institucionais, da macropolítica do desenvolvimento e da construção do futuro” e que não parecia disposto a mudar, mudou e passou a ter uma base de apoio mais consistente no Congresso, a ponto de descartar a possibilidade da abertura de um processo de impeachment, com os sucessivos crimes de responsabilidade (e outros) que a oposição tem acusado (e também se fundamentado nas acusações) acumulando pedidos de impeachment no Congresso Nacional sem que haja possibilidade de se levar adiante. Sequer a abertura do processo, que cabe ao presidente da Câmara dos Deputados.

Este, como aliado,  deu seguimento a pautas de interesses do governo como a autonomia do banco central, a reforma do imposto de renda, a PEC dos precatórios, a flexibilização das leis ambientes, o auxilio Brasil etc.

 Ao optar pela cooptação e não pela confrontação o objetivo é o de ampliar sua base de apoio e evitar o perigo de instabilidade política e social com uma crise de governabilidade, uma paralisia decisória, como ocorreu no governo de João Goulart (1961-64) e também no segundo governo de Dilma Rousseff (2015-2016).

A questão central é como manter essa base aliada até a eleição em um cenário no qual há um quadro social e econômico de crise, com o país com altas taxas de desemprego, desvalorização do real, inflação crescente, aumento constante dos preços da gasolina (46% em 2021), sem reajuste salarial para o funcionalismo público (a não ser apenas para a sua base de apoio), a ampliação das desigualdades, o crescimento da miséria e da pobreza, e especialmente a falta de perspectivas (de empregos, melhorias, queda da inflação, etc.) e, como diz Abranches “Um governo que frustra as expectativas e uma economia que desalenta a maioria são ingredientes perigosos em qualquer lugar”. (…) e é a partir da compreensão dos fatores de risco presentes no ambiente que podemos desenvolver práticas preventivas capazes de imunizar a democracia brasileira, preservar suas virtudes e corrigir suas falhas”. 

Resta saber se a substituição da confrontação pela cooptação serão suficientes para imunizar e preservar a democracia, evitar um golpe caso de confirme a hoje previsível derrota eleitoral nas eleições presidenciais de outubro e mais ainda, se o Centrão, ao perceber a ampliação do desgaste popular, e a consolidação das intenções de voto em Lula ainda irá manter o apoio, mesmo com as benesses que tem recebido. 

No momento, os desdobramentos desse processo, com o cenário atual, social, político e econômico, são imprevisíveis.