Para onde foram os votos de Marina Silva?
David Soares de Souza –
Em 2010 Marina Silva foi candidata à Presidência da República pelo Partido Verde (PV). Recebeu 19.639.359 de votos, expressando 19.33% do total de votos válidos. No pleito seguinte, em 2014, teve resultado ainda melhor e alcançou 22.176.611 votos, ou 21,32% dos votos válidos. Nesta ocasião, chegou a liderar a campanha e a despontar como favorita em cenário de segundo turno.
Merece destaque o fato de que em 2014, Marina disputou a Presidência pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB), após a tragédia que vitimou o ex-governador de Pernambuco Eduardo Campos. Marina filiou-se ao PSB para ser candidata a Vice Presidente, apesar dos 19,33% em 2010, e terminou por assumir a cabeça da chapa.
Em 2018, disputou por um terceiro partido (o quarto de sua trajetória) o Rede Sustentabilidade, construído a partir de sua liderança. Porém, naquele ano todo o capital político de Marina Silva ficou reduzido a 1.069.577 votos, correspondendo a apenas 1% dos votos válidos, menor que o Cabo Daciolo e bem distante daqueles 21,32% de apenas quatro anos antes.
No artigo acadêmico “Mobilidade social ascendente e voto: as eleições presidenciais de 2010 no Brasil” dos pesquisadores Vitor Peixoto e Lucio Rennó, verifica-se que o crescimento de Marina Silva ocorreu entre os eleitores neopentecostais e conservadores, mobilizados pela pauta moral, a exemplo do combate ao aborto, e de crítica à “velha política”. Observe que estes mesmos elementos compuseram o discurso de Jair Bolsonaro, em 2018.
Embora seja uma mulher, negra, de origem popular e projetada como militante de esquerda e da luta ambiental desde a Amazônia, sobretudo a partir do assassinato de Chico Mendes, não foi este o perfil que impulsionou Marina Silva como uma “terceira via” nacional, ao contrário.
Embora mantendo entre setores da classe média uma simbologia importante vinculada ao seu passado, o nome de Marina ganhou destaque, lá em 2010, a partir de sua vinculação com a igreja pentecostal Assembleia de Deus. Inclusive, chama atenção que são os evangélicos que compõem a fatia do eleitorado que mais apoia o governo Bolsonaro. No início deste mês de março, números divulgados pelo instituto IPEC (que reúne a equipe do antigo IBOPE), indicam que entre os evangélicos 38% apoiam o atual presidente.
E se fatos dizem mais do que palavras, vamos a eles: no segundo turno de 2010 Marina manteve-se “neutra” na disputa entre Dilma Rousseff e José Serra, argumentando que PT e PSDB eram a mesma coisa, partes da “velha política”. É exatamente o mesmo conteúdo do argumento usado por Bolsonaro em 2018 que se apresentava como a opção “contra tudo isso que está aí”. Observação: este mesmo recurso de retórica, de tentar igualar desiguais para se apresentar como alternativa, é usado atualmente por aquele setores que, na direita, perderam espaço para o bolsonarismo.
Mas, em 2014, no ápice de sua força política, Marina não optou pela neutralidade no segundo e assumiu seu apoio ao PSDB. À sua vinculação com os neopentecostais e com a agenda conservadora, somou-se a agenda neoliberal. Na disputa entre Dilma Rousseff e Aécio Neves, Marina subiu no palanque do tucano e jogou água no moinho antipetista, dizendo que assim a favor do Brasil. Repararam outra semelhança?
Antipetismo, pautas conservadoras na esfera moral, neoliberal com fortes críticas ao tamanho do Estado, discurso de antipolítica: quem, em 2018, ocupou esse espaço construído pelas candidaturas de Marina em 2010 e 2014?
Merece registro o fato de que, já no primeiro turno de 2014, Marina foi além do próprio PSDB na defesa do neoliberalismo e defendeu a autonomia formal do Banco Central. Esta medida, que nem Temer conseguiu aplicar, só foi efetivada no governo Bolsonaro, atendendo ao mercado financeiro.
Por mais que haja a tentação de discutir a política a partir das personalidades, os projetos políticos são coletivos e ocupam um lugar no espaço. É por isso que não se pode analisar política sem analisar o conteúdo. Entre outras variáveis, importa perceber quais discursos são utilizados para defender determinados projetos. Para além de analisar o comportamento dos eleitores é importante perceber como os grupos detentores das grandes riquezas se movimentam, inclusive e notadamente as grandes empresas de comunicação e seus editorais.
As assimetrias existentes na formação da agenda da sociedade e da opinião pública não apenas comprometem a democracia, mas também projetam lideranças que de tempos em tempos defendem mudanças para que tudo permaneça como sempre foi. O status quo pode dispor de novos nomes, como o apresentador Luciano Huck, pode fazer parecer uma novidade nomes que são antigos, como Jair Bolsonaro, ou pode resignificar e se apropriar da história de lideranças construídas pelo campo popular, como é o caso de Marina Silva. Por qual partido ou com qual nome? Pouco importa. Para a classe dominante, o que importa é o projeto a ser defendido e é isto que, de fato, polariza a sociedade.