Os mitos, a política e a reestruturação sociorreligiosa – parte II
Para entender um pouco mais as questões político-religiosas, abordei anteriormente a questão de como se estabelecem os mitos na história da humanidade a partir da visão de Joseph Campbell, na obra “As máscaras de Deus: mitologia Criativa”. Para complementar a visão de Campbell e começar a entender de forma mais profunda esta estruturação sócio-religiosa e como ela se torna sócio-política-religiosa, trago a visão de Claude Lévi-Strauss na obra “Mito e Significado”.
Reforçando o texto da coluna anterior, Lévi-Strauss aborda a origem dos mitos como sendo algo presente em diversas culturas de diversos povos diferentes, que muitas vezes trazem em comum os mesmos elementos em suas origens, aliás, algo muito próximo, nesse sentido, da abordagem de Joseph Campbell.
O autor tenta se afastar do eurocentrismo para entender outras culturas sem fazer uma análise comparativa, mas a partir de uma análise de sua estrutura e, partindo da diferenciação entre mito e ciência, onde o mito teria sua origem nos sentidos, ele questiona o cogito cartesiano, paradigma científico no qual se espelhou toda ciência moderna entre os séculos XVII e XVIII, época em que os pensadores como Bacon, Descartes e Newton adotaram um novo paradigma e, de tal forma, foi imperioso “à ciência levantar-se e afirmar-se contra as velhas gerações de pensamento místico e mítico, e pensou-se então que a ciência só podia existir se voltasse as costas ao mundo dos sentidos, o mundo que vemos, cheiramos, saboreamos e percebemos” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 11). Esse foi um movimento necessário para a constituição científica à época, mas criou um fosso que agora busca superar, tendo em vista que há um “ponto intermediário entre a mente e a experiência” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 13) que foi relegado pela ciência moderna.
O divórcio entre a ciência e o pensamento mítico ou a razão sensível, nas palavras do autor, foi algo necessário, no entanto, hoje pode ser questionável, pois a ciência já mostrou sua insuficiência em relação à resolução de todos os problemas. Já se sabe que ela não é uma panaceia, pois “ela nunca nos dará todas as respostas” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 19), mas não se deve desprezá-la, tendo em vista que ela é um caminho pelo qual poderemos um dia estar mais próximos de respostas.
As relações entre a ciência, o mito e a história se configuram socialmente e são comunicadas culturalmente, estabelecendo e estruturando ou re-estruturando a sociedade. Essa forma de comunicar a cultura, o que Lévi-Strauss chama de supercomunicação, influencia as sociedades, e trazendo isso pra nossa conjuntura atual, há de se ponderar, pois há o risco do indivíduo consumir uma informação questionável sem sopesar, ponderar a informação, o que hoje poderia se chamar de disseminação de “fake news” com alta capacidade de distorcer a realidade.
Lévi-Strauss chama atenção para as operações binárias presentes nas narrativas míticas e as compara com as operações binárias cibernéticas presentes no mundo científico. Essa analogia lhe permite concluir que as fronteiras entre a ciência e o mito têm entre si muito mais similaridades que diferenças. Claro que isso não invalida ou desvaloriza o saber científico, pelo contrário, isso dá perspectivas plurais de visualização de um todo no qual se insiste ver só uma parte.
Uma observação pertinente do autor é o questionamento entre a fronteira histórica e a fronteira mitológica: “onde acaba a mitologia e onde começa a história?” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 46). É importante refletir, nesse sentido, sobre a oralidade permeando as sociedades como principal fator de transmissão de informação e conhecimento, algo que denota, a partir de uma breve análise, que as margens entre a mitologia e a história são borradas, são, por assim dizer, fronteiras não tão bem definidas, de forma que há entre elas “um nível intermediário” (LÉVI-STRAUSS, 2000, p. 49) que necessita ser levado em consideração.
Estando presente em diversas civilizações, estruturando-as conforme os interesses sócio-políticos, os mitos, presentes também nas religiões e integrando muitas vezes o campo do sagrado, são elementos presentes na supercomunicação e influenciam a sociedade e a práxis social dos indivíduos. Essa operação ocorre do indivíduo para o coletivo e do coletivo para outros indivíduos, operando em fluxo constante de afetamento mútuo, gerando a arquitetura que estrutura a construção do tecido sócio-político-religioso.
Por Regina Negreiros
REFERÊNCIA:
LÉVI-STRAUSS, Claude. Mito e Significado, Lisboa: Edições 70, 2000.