Os mitos, a política e a estruturação sócio-religiosa

Para começar a entender um pouco mais profundamente as questões político-religiosas, é interessante, antes, perceber como se estabelecem os mitos na história da humanidade. Um autor fantástico para começar a fundamentar essa discussão é Joseph Campbell, por isso, trago inicialmente sua visão sobre o tema a partir da obra “As máscaras de Deus: mitologia Criativa”.

Inicialmente é importante entender que a espiritualidade humana, conforme diversos pesquisadores da área tem uma só origem tendo em vista a presença dos mesmos temas em diferentes culturas que não tiveram contatos entre si. Nessa perspectiva são os mitos que conferem sentido à dimensão dos fatos que forjam nosso cotidiano dentro de suas funções mitológicas.

Para Campbell os mitos têm funções muito específicas nas sociedades, são elas: a) despertar a consciência para o mistério da existência; b) apresentar uma imagem compreensível do universo; c) impor uma ordem moral e de conformação do indivíduo, o que pode gerar uma ruptura com sua própria natureza; e d) auxiliar no encontro do indivíduo consigo mesmo para desenvolver-se em consonância com seu microcosmo (seu eu), com o mesocosmo (sua cultura), com o macrocosmo (o universo) e com sua psique (o dentro e o fora de si e todas as coisas).

Analisando antigas civilizações de diferentes lugares e épocas, a partir dos mitos e símbolos de suas mitologias, percebe-se a reinterpretação, a ressignificação e até mesmo a reinvenção dos mitos das diversas culturas que muitas vezes sincretizaram suas mitologias.

Nessas civilizações também é possível observar que na estrutura mitológica há um dualismo, um maniqueísmo presente de diversas formas como na ideia de condenação/salvação, sombra/luz, deus/diabo, céu/inferno, hades/ilhas afortunadas, bem/mal etc. Aliás, na idade média o inferno foi o grande carrasco que aterrorizou populações inteira que, por medo da condenação, rogavam a intercessão de Maria, ou seu filho Jesus, por sua salvação, e assim a igreja católica perpetuou seu salvador.

Os mitos têm sua origem a partir das experiências individuais que, ao serem absorvidas pela sociedade, se convertem em determinantes coletivos, crença pública que impõe sua realidade. A força das convicções baseadas na própria experiência, a fé individual, subjetiva, em oposição à coletiva, que forma um símbolo mítico que serve como guia e suporte social.

A mitologização coletiva, no entanto, vem se desintegrando, e os indivíduos vêm se auto-orientando e encontrando a sensatez na medida em que se esclarecem, abandonando os mitos socialmente impostos, sendo coerentes com seus desejos, ações e conhecimentos, respeitando sua própria individualidade sem se sentirem na obrigação de “professar crenças que não são as próprias e viver de acordo com elas” (CAMPBELL, 2018, p. 86), agindo em conformidade consigo mesmo, se encontrando, ao invés de perder-se de si mesmo através do seu falseamento.

A desmitologização é resultado do desejo de conhecer, e o conhecimento tem gerado uma dolorosa percepção de profundidade em relação às impressões, estereótipos e arquétipos da esfera social que age determinando nosso cotidiano. Os mitos, as imagens, as formas, na medida em que nos povoam nos esvaziam de nós mesmos, nos personifica na medida em que nos desalma.

As máscaras de Deus estão presentes em todas as civilizações e de diferentes formas devido às adaptações simbólicas ocorridas ao longo da história e que fazem parte da própria dinâmica sócio-cultural. Por exemplo, no Velho Testamento há uma ordem mitológica patriarcal e masculina que exclui o feminino de sua função cósmica, mas no Novo testamento surge a figura materna de Maria, a mãe do Salvador.

De tal forma, Campbell (2018, p. 85) mostra que “os componentes trazidos de qualquer tempo passado para o presente, ou de uma cultura para outra, deixam seus valores no umbral cultural e dali em diante ou tornam-se meras curiosidades ou passam por uma transformação mediante um processo de confusão criativa”. Essas transformações e ressignificações mitológicas tanto influenciam como são influenciadas pelo contexto político e social, tendo em vista que a cultura é alimentada através dessas perspectivas, formando novas concepções ou ressignificando antigas tradições de cunho mítico ou religioso que moldam politicamente os sujeitos.

REFERÊNCIA:
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: Mitologia Criativa, Vol. 4. 2 ª ed. São Paulo: Palas Athena, 2018.