Os maracatus, as encruzilhadas culturais e o pertencimento religioso – parte I
Vc já ouviu ou já dançou ao som dos alfaias dos maracatus? Os maracatus trazem consigo uma identidade que é tanto sagrada quanto profana. Embora sejam dois domínios distintos, um não exclui o outro, eles coexistem, coabitam nos tambores, nos gonguês, nos agbês, nas calungas, nas vestimentas e na liturgia.
Os maracatus podem ser de dois tipos: baque virado ou baque solto.
O baque virado é um amálgama que compreende as expressões culturais, as relações comunitárias, o compartilhamento de práticas e memórias, tendo estabelecido, ao longo de sua história, forte vínculo com as religiões afro-brasileiras. É, portanto, uma configuração cultural complexa constituída socialmente por uma história cheia de ressignificações e muitas lacunas. O baque virado é também conhecido como maracatu nação.
O baque solto, também conhecido como Maracatu rural, está associado ao ciclo canavieiro da zona da mata pernambucana, tendo sua origem em engenhos de trabalhadores rurais e cortadores de cana-de-açúcar entre os fins do século XIX e início do século XX, tendo surgido bem depois do baque virado. Ele surge a partir da fusão de referências e folguedos diversos, incorporando elementos como bumba meu boi, cavalo-marinho, aruendas, reisado, além do próprio Maracatu nação, em uma mistura de várias manifestações.
Mais recentemente os maracatus de baque virado passam a ocupar um outro lugar que não é considerado como nação por alguns pesquisadores que passam a compreender essa nova categoria como baque virado laico, maracatu laico ou ainda, simplesmente, batuques.
Para compreender a questão do termo “nação”, é importante problematizar o estatuto dos maracatus, tendo em vista que a categoria “nação” tem sido algo polêmico entre os grupos que produzem o baque virado, mas não têm uma filiação direta com os espaços afro-religiosos. Se autodenominam nação aqueles que seguem os preceitos e as ritualísticas previstas na tradição dos Maracatus em Pernambuco, tais como estar “assentado” em um terreiro, isto é, ter um vínculo religioso com o candomblé ou outra religião de matriz afro-brasileira e possuir um vínculo com a comunidade que solidifique e legitime seus laços identitários. A questão de ter uma corte com Rei e Rainha coroados por outra nação é também um ponto que deve ser considerado para se conceder o estatuto de nação a um Maracatu. Mas a vinculação com as religiões afro-brasileiras, seja com o candomblé, umbanda ou o catimbó-jurema, parece ser o fator legitimador decisivo.
A terminologia “nação” é utilizada como uma forma de solução étnica para exprimir as cargas culturais de determinados grupos com base em suas semelhanças. No entanto, há sociologicamente um deslocamento do termo no âmbito das religiões afro-brasileiras, quando ele deixa de ter uma conotação geográfica para indicar modelos de rituais distintos existentes no âmbito do Candomblé, como quando se refere à nação ketu, jeje, angola, entre outras. De tal modo, o que se entende por nação é a construção identitária que segue se ressignificando cotidianamente, se constituindo entre os grupos de maracatus como um marco de legitimidade e autenticidade. Apesar disso, os baques virados na Paraíba não parecem estar preocupados com essa “autenticidade” conferida pela tradição pernambucana, tendo em vista que todos são legítimos em sua representação social e cultural, preservando as raízes e a memória, e mesmo que não sejam assentados, preservam características da religiosidade afro-brasileira por meio das loas, das indumentárias e de elementos ritualísticos, apesar dos tensionamentos entre os grupos.
Os tensionamentos e as controvérsias, no entanto, fazem parte da dialética cultural e social. O argumento dos maracatuzeiros tradicionais, tidos e havidos como nação, afirmam muitas vezes que os Maracatus de baque virado que não têm consagração em terreiro são oriundos do modismo da década de 1990, quando os grupos começaram a surgir após o sucesso de Chico Science e Nação Zumbi. Para alguns destes maracatuzeiros, os Maracatus sem assentamento, sem vinculação religiosa com os terreiros, não trazem em si a africanidade e a tradição, a história da negritude brasileira e dos filhos da escravidão negra, não possuindo legitimidade para atuar. Além disso, alguns argumentam que, sendo um movimento surgido da efervescência cultural promovida pelo movimento mangue, esses grupos têm como alvo o público jovem, muitas vezes branco, elitista e de classe média.
O primordial é destacar que o Maracatu é uma configuração cultural que pode ser interpretado dentro do sentido atribuído pelos maracatuzeiros a essa prática. Essa percepção denota um “algo a mais” sobre a sua compreensão, pluralizando seu significado, que passa de uma prática cultural a uma forma de sentir que possibilita a transformação do sujeito, emponderando-o de si, do seu sentido comunitário, do seu papel político e social, resgatando-o muitas vezes das zonas abismais em que já não há sentido em ser algo ou pertencer a uma comunidade, tornando possível mudar a realidade de muitos jovens pela inclusão e pelo acolhimento, mudando perspectivas e auxiliando na diminuição da violência na comunidade, na elevação da autoestima, provocando mudanças também na forma de se ver enquanto um indivíduo pertencente à comunidade. Isto é, os maracatus simbolizam a possibilidade de transformação dos sujeitos.
Os maracatus envolvem uma pluralidade simbólica de significados diversos que historicamente ressignificaram suas práticas e conceitos diante da indústria cultural e dos movimentos da cultura de massas e mesmo na dinamicidade histórica e em sua hibridação, mesmo com a interferência da cultural, da mercantilização e herança da cultura afro-brasileira como um produto carregado de exoticidade, os Maracatus trazem a sonoridade de um cortejo originário que se reafirma diariamente, despertando algo para além do que se vê e se ouve, estando muito à frente do significado folclórico, da dança e da folia. O baque do Maracatu reside na encruzilhada e desperta sentimentos profundos nos maracatuzeiros e maracatuzeiras porque ele é parte da história dinâmica dos negros, da fé e da religiosidade afro-brasileira.
Com relação à sua genealogia, o maracatu surge de forma exógena aos terreiros, mas devido às perseguições ocorridas ao longo do século XX, principalmente no período da interventoria de Agamenon Magalhães em Pernambuco, ele ganha a proteção dos terreiros e passa a ser parte de alguns deles. Com as aparências da modernidade, como é o caso da globalização, os maracatus transbordam os terreiros e tornam-se uma característica cultural que ganha força na década de 1990 com o movimento manguebeat e a propagação dos batuques em todo o país. Com o passar dos anos, o Maracatu passa a ser uma expressão da cultura popular, sendo visto como algo folclórico e não mais uma forma de reverência, distanciando-se, aparentemente, de sua dimensão religiosa. No entanto, sua ancestralidade o liga e o ligará sempre aos Orixás, aos terreiros e ao Povo de Santo. De tal forma, o maracatu não é apenas conhecimento popular transmitido por meio das gerações, é antes de uma esconsa incitação ao religioso, à consagração da fé de um povo fustigado pela dor e pelo desprezo colonial.
Os maracatus, nação ou não-nação, têm sua importância histórica e social como mantenedores de uma cultura secular que, mesmo hibridada e ressignificada, traz consigo a força dos tambores e de uma ancestralidade que não ficou relegada a um passado distante, estando presente na vida cotidiana de pessoas de diversas etnias, religiões e classes sociais. Os tambores, redescobertos por meio da força do movimento manguebeat que o propagau para fora dos terreiros, borraram suas próprias fronteiras, permitindo que o maracatu se firmasse socialmente na cultura brasileira, quebrando o paradigma social e o preconceito étnico daqueles que o julgavam apenas como folclore.
Nesse sentido, a compreensão dos Maracatus perpassa o caráter dimensional das fronteiras do sagrado, por isso não dá para considerar como Maracatu apenas os grupos tidos e sortes como nações, pois todos os baques virados trazem consigo algo mais que o som, algo mais que o batuque, algo que tem vidas transformadas, incluindo e aproximando pessoas de diversos grupos sociais, étnicos e religiosos.
É importante frisar que existem múltiplas relações entre o sagrado e os maracatus. De tal forma, não se pode generalizar essas relações porque a hibridação e a transculturação que ocorrem ao longo da história entre as várias vertentes culturais trazem consigo a manifestação de transculturação, no qual as fronteiras passam a se borrar mutuamente, e isso inclui as fronteiras do sagrado. A globalização amplificou esse interesse para outras comunidades circunvizinhas em diversas camadas sociais, gerando conexões políticas, sociais e religiosas replicadas, tanto em nível micro como em nível macro, fato que pode ser apresentado tanto em terreiros quanto em grupos culturais.
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Referências:
NEGREIROS, Regina. Maracatu à paraibana: no baque virado das encruzilhadas. Curitiba: Editora Appris, 2023.
Na segunda-feira de Carnaval, no Pátio do Terço da Igreja do Rosário dos Pretos, todos os Maracatus Nação da Grande Recife se reúnem em festa, e exatamente a meia noite um uma iyalorixá ou um babalorixá faz uma prece em yorubá. Uma festa linda e cheia da simbologia religiosa. Regina, esta sua coluna é magistral. Nela, não há quem não acesse o conhecimento. Parabéns!
Muito bom! Não conhecia essa divisão dos maracatus em “baque virado” (nação) e “baque solto”. E, como sempre, Regina, você consegue escrever de modo que, ao explicar a divisão existente entre os maracatus, você também consegue demonstrar a importância histórica destes sem o peso (desnecessário) de qualquer dicotomia. Admiro demais esse seu jeitinho de fazer com que o conhecimento possa estar sempre em constante diálogo!