Os dois corpos de Bolsonaro

No livro clássico da ciência política Os Dois Corpos do Rei, Ernest Kantorowicz desenvolveu a tese de que um rei possuía dois corpos. Um corpo humano, frágil, perecível, suscetível à morte. E um outro corpo, este político e mítico, infalível, pleno de verdade e perenidade.

O poder dos reis, assim como dos políticos na contemporaneidade, consiste neste caráter duplo: o líder é humano, mas também mítico, diferente, especial. Sua liderança consiste em ser encarado como um ente excepcional, como um semideus que nos salvará dos perigos, das angústias, dos inimigos.

Jair Bolsonaro, logo após o julgamento que o tornou inelegível por 8 anos, postou uma foto de dorso nu, mostrando uma longa cicatriz, resultado do atentado que sofreu em 6 de setembro de 2018. O objetivo da imagem é fortalecer a mística em torno dele: o herói que quase morreu em defesa dos seus ideais e que continua perseguido pelos poderosos que estão no poder.

A mística bolsonarista cria a narrativa da vitimização. A exposição da agressão ao seu corpo humano busca fortalecer o seu corpo político. A deformidade revelada na chaga o eleva ao patamar mítico dos mártires religiosos e políticos. Esta é a mensagem da foto: mesmo quase morrendo, ele continua na luta por seus ideais.

Como todos os líderes populistas, Bolsonaro procura aproximar-se do povo construindo a imagem de salvador da pátria, do herói redentor que irá nos libertar dos males que nos afligem. Nos próximos anos, sua retórica religiosa e sua postura de vítima serão exibidas ao máximo, na perspectiva de manter-se como único líder da extrema direita no Brasil.

Só o tempo, e a justiça, dirão quanto o mítico Bolsonaro sobreviverá aos crimes cometidos pelo Bolsonaro humano.