Os devaneios do Caminhante solitário – segunda parte.

A nossa última coluna do ano de 2023 foi sobre “Os devaneios do caminhante solitário”, do filósofo Jean-Jacques ROUSSEAU. De tal forma, gostaria de começar esse ano de 2024 dando continuidade àquele texto que, conforme os feedbacks que tive, parece ter trazido uma reflexão sobre a vida e certa serenidade sobre a necessidade do cultivo da alma em relação a nossa finitude e a caminha que escolhemos fazer durante nossa existência terrena.

Bem, como creio ter dito anteriormente, Os devaneios do Caminhante Solitário foi a última obra escrita por Rousseau, já ao final de sua vida quando se encontrava exilado da sociedade. Em parte do seu exílio, o autor praticava o ócio e distraía-se com o prazer do estudo da botânica. Teve o privilégio de poder escolher um lugar de paz para suas pesquisas, longe de todas as maldades da humanidade.

As paisagens coroavam a imaginação e a reflexão de Rousseau, que passa a descrever sua felicidade por entre os cenários bucólicos e a nostalgia dos momentos vividos. Nesse tempo-espaço ele constata que a mudança é a única coisa permanente no universo e que os seres humanos e tudo o que existe, existe em constante mudança, como em eterno fluir no qual devemos alimentar nossa alma, na medida do possível, como o prazer constante nas pequenas coisas, tendo em vista que não existe felicidade que dure para sempre:

Tudo vive num fluxo contínuo na terra: nela, nada conserva uma forma constante e definitiva e nossas afeições, que se apegam às coisas exteriores, passam e se transformam necessariamente como elas. Sempre à nossa frente ou atrás de nós, lembram o passado, que não mais existe ou antecipam o futuro que, muitas vezes, não deverá existir: nada há de sólido a que o coração se possa apegar. Assim, na terra, temos apenas um pouco de prazer que passa; quanto à felicidade duradoura, duvido que seja conhecida (ROUSSEAU, 2018, p. 69).

As divagações de Rousseau refletem o Ser que é no não-Ser. Aquele que não se agita nas paixões, mas se compraz na solidão da extensão do seu próprio eu, como num retiro onde se pode conhecer-se a si mesmo e desfrutar da natureza que lhe adorna a existência sem deixar-se degenerar, porque esse mergulho é, em si mesmo, uma volta para as mãos do Criador:

O sentimento da existência, despojado de qualquer outro apego é por si mesmo um sentimento precioso de contentamento e de paz, que sozinho bastaria para tornar esta existência cara e doce a quem soubesse afastar de si todas as impressões sensuais e terrenas que vêm continuamente nos afastar dela e perturbar, na terra, sua suavidade (ROUSSEAU, 2018, p. 70).

Importante compreender que, na perspectiva do autor, apesar do contínuo movimento da existência, “Não deve haver nem um repouso absoluto nem demasiada agitação, mas um movimento uniforme e moderado, sem abalos nem intervalos” (ROUSSEAU, 2018, p. 71). As paisagens mudam, o tempo muda, o homem muda, mas há um espaço pequeno na memória para inflar os sentimentos alegres e contemplativos do Ser que por alguns instantes existe sem agitações e livre “de todas as paixões terrenas produzidas pelo tumulto da vida social” (ROUSSEAU, 2018, p. 72), espaço este onde a “alma se lançaria frequentemente acima dessa atmosfera e entraria desde já em relação com as inteligências celestes” (ROUSSEAU, 2018, p. 72).

O caminhante solitário, portanto, é um introspectivo e nostálgico apreciador da natureza que encontra a felicidade e a paz na nostalgia de momentos felizes, longe do turbilhão das ruas de uma sociedade movida pelas paixões e pelos egocentrismos aos quais o velho caminhante solitário se sente distoar.

Com essa reflexão da primeira coluna de 2024, que se conecta a anterior, último texto de 2023, reforço a necessidade de, em meio ao turbilhão das ruas digitais dos tempos atuais, em meio a agitação e ao eterno fluir da nossa existência social, que nos conectemos com nossos melhores e mais profundos sentimentos de amor, alteridade, empatia, mesmo em meio as dificuldades e aos obstáculos surgidos, para cultivarmos em nós e através de nós os sonhos, as memórias, a paciência e a doçura. Que nos distraiamos com o prazer de pequenas coisas, gestos e afetos, que sejamos solidários e fraternos para que nossa experiencia no mundo seja um abraço coletivo, ou que, como costumo pensar, que nossa experiência no mundo não seja solitária, mas solidária para produzir sonhos coletivos de esperanças e assim cultivarmos em nossa alma, nessa curta existência terrena, uma ternura suficientemente necessária para ressignificar as experiências, transformar as existências e inspirar os que virão, lembrando que a nossa ancestralidade não está só no passado, ela é hoje e será amanhã porque, como diz Krenac (2022), “O futuro é ancestral e a humanidade precisa aprender com ele a pisar suavemente na terra.”

 

REFERÊNCIA:

KRENAK, Ailton. ‘Pisar Suavemente na Terra’. Documentário: Amazônia Latitude Films 2021. Disponível em: https://pisarsuavementenaterra.com.br/

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. Tradução, introdução e notas de Fúlvia Maria Luiza Moretto. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2018.