Os devaneios do Caminhante solitário

Comecei o ano de 2023 com uma coluna sobre James Hillman e a psicologia de cultivo da alma. No texto o autor afirma que a alma é uma constituição psicológica, intangível e indefinível, mas que possui predicados: “por ‘alma’ refiro-me a possibilidade imaginativa em nossa natureza, o experimentar através da especulação reflexiva, do sonho, da imagem, da fantasia – aquele modo que reconhece todas as realidades como primariamente simbólicas ou metafóricas” (HILLMAN, 2010, p. 28). De tal modo, é preciso cultivarmos a alma, prevenir o adoecimento o seu adoecimento e cultivá-la a partir das melhores e possíveis imagens que moldem nosso Ser para o bem viver. Para terminar o ano, gostaria de trazer um texto sobre parte da obra “Os devaneios do caminhante solitário”, Jean-Jacques Rousseau, uma obra cheia de intimismo e sensibilidade escrita no século XVIII, quando Rousseau praticou o mais profundo ócio para meditar em uma caminhada sobre sua própria existência, a partir de um olhar sobre si mesmo por entre as frestas da natureza; no habitat da alma, lar que acolhe a vida após todas as desilusões das primaveras e soturnos invernos.

No texto percebe-se a maturidade e a sensibilidade das quatro estações da vida de um Rousseau intrinsecamente ligado à natureza. Natureza esta que aparece em outras de suas obras de forma metafísica em sua constante busca pela essência humana. O velho Rousseau, em seus devaneios volta-se a si mesmo, e como em um espelho, ver-se como parte natural da existência do todo, e escreve como um desabafo existencial. São dez caminhadas solitárias onde o autor parece vagar para lugar nenhum, no entanto, esse é um caminho de volta, um encontro consigo mesmo, um caminho para a vida natural. As caminhadas conectam o autor com uma vida desinteressada, pelo simples prazer de contemplar para atingir o intangível através da contemplação do belo que nos cerca, um doce refúgio para a harmonização interior. 

Em determinado trecho da obra, Rousseau o autor cita uma frase de Sólon citada por Plutarco: “Envelheço aprendendo sempre” (ROUSSEAU, 2018, p. 36). A partir dessa frase o autor constata que às vezes à ignorância é preferível em relação ao conhecimento, e com profunda nostalgia, ele questiona: “É no momento em que é preciso morrer que se deve aprender como se deveria ter vivido?” (ROUSSEAU, 2018, p. 36), e segue se perguntando de que vale o conhecimento tardio quando se está perto da morte e qual sua utilidade diante do porvir? Ele conseguiu ter lucidez na velhice para problematizar e perceber os limites da própria razão.

Mas as inquietudes não bastam, pois “Não é a partir de um saber que se pode verdadeiramente sonhar, sonhar um devaneio sem censura” (BACHELARD, 1988, p, 35) e, por isso, como um sonhador em colinas a beira de precipícios, Rousseau se joga dentro de si mesmo e depara-se com a sombra da morte a espreita, debochando-lhe do que acumulou e que de nada servirá na morte. Essa angustia carregada de pessimismo é o passaporte para as reflexões e para a memória de sua vida, da infância e dos ensinamentos nela contido, tendo em vista que entre os homens já sabia que não poderia encontrar a felicidade e que precisaria buscar nas lembranças e na imaginação o descanso pretendido.

O isolamento consequente da decisão de uma necessária reforma íntima propiciou ao Rousseau uma profícua solidão a partir do isolamento social que lhe trouxe mais dúvidas que certezas. Todo esse labor intelectual suscitou críticas severas aos filósofos que ele considerou egocêntricos e a quem chamou de sofistas, cujos argumentos não o haviam persuadido, mas inquietado sem jamais o convencer. 

O conflito silente entre a razão e o sentimento é uma constante, mas o que a razão atormenta, o sentimento apazigua. E esse sentimento reside no coração que sustenta a razão e que não o permite titubear naquilo que de fato acredita e que refuta o que lhe é discordante. As ansiedades geradas pelos conflitos são, nas palavras do autor, “leves inquietudes que não afetam a minha alma, assim como uma pluma que cai no rio não pode alterar o curso d’água”  (ROUSSEAU, 2018, p. 45). Ele reconhece a complexidade da existência e a incapacidade de se ver poder compreender toda sua extensão, por isso resta-lhe o recolhimento ensimesmado sem as argumentações retóricas nem as falsas morais apregoadas por muitos dos sofistas. Resta a Rousseau, no declínio do seu corpo envelhecido, cultivar o que a morte não faz sucumbir: “a paciência, a doçura, a resignação, a integridade e a justiça imparcial” (ROUSSEAU, 2018, p. 47), virtudes estas a que ele consagra sua sábia, solitária e silente velhice.

A relação que faço entre o primeiro e o ultimo texto de 2023 se conecta a partir da nossa necessidade de cultivarmos a alma com sonhos, memórias, paciência e doçura. Os conflitos existem, mas a alma precisa ser cultivada com bons sentimentos para fazer brotar a esperança de dias melhores adubados por lembranças de afeto, ternura e solidariedade. Aliás, não precisamos ser caridosos, precisamos ser solidários com o próximo, tratarmos com afeto e empatia para que nossa experiência no mundo não seja solitária, mas solidária. Que em 2024 nossos devaneios sejam coletivos e que os sonhos possam cultivar em nossas almas uma ternura que ressignifique as experiências e as transforme em bons ventos de inspiração para que possamos envelhecer aprendendo sempre.

 

REFERÊNCIA:

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Os devaneios do caminhante solitário. ; tradução, introdução e notas de Fúlvia Maria Luiza Moretto. São Paulo: Editora Nova Alexandria, 2018.

BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. Trad. Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

HILLMAN, James. Re-vendo a psicologia. Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2010