O ódio e suas consequências na política (e na sociedade)
Em junho de 2019, a Organização das Nações Unidas (ONU) publicou um documento intitulado Plano de Ação sobre o Discurso do Ódio, entendido como “Qualquer tipo de comunicação falada, escrita ou comportamento que ataca ou usa linguagem pejorativa ou discriminatória com referência a uma pessoa ou grupo com base em quem eles são. Em outras palavras, sua religião, etnia, nacionalidade raça, cor, descendência, sexo ou outro fator de identidade”.
Resumidamente, todas as formas de expressão que propagam, incitam, promovem ou justificam o ódio racial, a xenofobia, a homofobia, o antissemitismo e outras formas de ódio baseadas na intolerância.
Vivemos um momento da sociedade brasileira em que o ódio, em todas as suas expressões, está muito presente, especialmente na política. Uma matéria publicada na revista Carta Capital no dia 14 de abril de 2022 informava sobre as ameaças a Lula por parte de alguns parlamentares e afirmava que “Ao ameaçar Lula, parlamentares atiçam a matilha bolsonarista, armada até os dentes” e que elas são parte de “uma nova fase da violência política brasileira, que sofreu uma escalada com o golpe de 2016 e atingiu níveis alarmantes desde a eleição de Bolsonaro”.
Com a vitória de Lula na eleição de outubro de 2022, muitos bolsonaristas afirmavam (não apenas nos seus nichos das redes sociais) que Lula não subiria a rampa do Planalto (subiu) e tentaram, sem sucesso, dar um golpe no dia 8 de janeiro de 2023, invadindo e depredando os prédios dos Três Poderes em Brasília, mas se foram derrotados, nem por isso o ódio, a violência e a intolerância deixaram de existir.
E estes fatos evidenciaram que a sua disseminação não se restringe à política institucional, ao parlamento com os “jagunços” do legislativo a que a matéria se refere, mas algo muito presente em segmentos expressivos da sociedade brasileira.
E na análise desse processo, há de se considerar o relevante papel das redes sociais, que os potencializam, com a instrumentalização política do fanatismo com os mecanismos que se conhecem: mentiras, falsificações, desinformação e manipulações de toda ordem que estimulam o ódio, a violência e a intolerância.
No governo Bolsonaro havia um clima favorável, de estímulo à violência contra seus inimigos, houve inclusive a formação de um chamado “gabinete do ódio” que tinha um dos seus filhos como operador. Uma matéria publicada no dia 27 de maio de 2020 na CNN Brasil por Caio Junqueira informava sobre uma decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes classificando o “gabinete do ódio” como uma possível associação criminosa “apontado como um local dentro do Palácio do Planalto em que servidores alinhados ao presidente Jair Bolsonaro elaboram fake news contra adversários políticos” e que segundo o ministro “As provas colhidas e os laudos periciais apresentados apontam para a real possibilidade de existência de uma associação criminosa (…) dedicada à disseminação de notícias falsas, ataques ofensivos a diversas pessoas, às autoridades e às Instituições, dentre elas o Supremo Tribunal Federal, com flagrante conteúdo de ódio, subversão da ordem e incentivo à quebra da normalidade institucional e democrática.”
Além da atuação desse gabinete, houve diversos decretos e portarias visando facilitar o acesso a armas e munições por parte de civis (a maioria, seus apoiadores). E, também não por acaso, uma das primeiras providências do governo Lula foi anulá-los. Na matéria da revista Carta Capital há inclusive a informação de que em diversos Clubes de Tiros havia fotos de Lula como alvos.
No entanto, o ódio como um componente essencial da disputa eleitoral, antecede a vitória da extrema direita em 2018 e mesmo o retorno de Lula à presidência em 2023. Ela está presente na sociedade brasileira de forma estrutural na qual o discurso de ódio (e seu “gabinete” dentro do palácio) encontrou guarida.
No artigo Ódio e política no Brasil atual, publicado na revista Teoria e Debate (Edição 199, de 04/08/2020) Antonio Albino Canelas Rubim professor da Universidade Federal da Bahia, analisa os efeitos da fabricação cotidiana do ódio e de violência e mais especificamente em relação ao PT e à esquerda em geral se referindo ao “brutal processo de inoculação do ódio na sociedade brasileira e que deriva da histórica postura antidemocrática das classes dominantes” e que é resultado de um longo processo de acionamento e construção do ódio desenvolvido no Brasil desde pelo menos 2005, com o chamado mensalão e a forma enviesada da cobertura na época da grande mídia hegemônica que atuou como ator político que de “modo quase unânime, buscou inocular o veneno cotidiano na população brasileira”, com uma intensa campanha de produção do ódio à esquerda e, em especial, ao PT e ao colocar em foco (de forma seletiva) o tema da corrupção, com um claro objetivo político “mobilizando dimensões imanentes do autoritarismo estrutural presentes na sociedade brasileira: discriminações, preconceitos, privilégios e violências de toda ordem foram acionados e estimulados pela imprensa para desqualificar a esquerda e viabilizar a tomada antidemocrática do poder federal”.
Nesse sentido, para compreender o ódio na política no Brasil é necessário retroceder e perceber que houve um processo de sua construção que alimentou e sedimentou o ódio no cenário político e que, como diz Rubim a partir de 2019 “instalou o ódio no cerne do governo federal, com seu culto, estímulo à violência e defesa da ditadura”.
Trata-se de ter uma compreensão mais ampla da “genealogia do mal” quando o ódio transforma os adversários em inimigos (a serem destruídos) “sem respeito à divergência de opiniões, interditando a pluralidade, o confronto e o debate de posições políticas diferenciadas”.
A dose de ódio inoculada na sociedade possibilitou o crescimento da extrema-direita e contribuiu para sua vitória eleitoral em 2018. No livro O discurso do ódio (Editora Difel, 2007) André Gluckmann analisa o discurso de ódio e seu papel na sociedade. A tese defendida por ele é a de que “o ódio existe tanto na escala microscópica dos indivíduos como no cerne de coletividades gigantescas. A paixão por agredir e aniquilar não se deixa iludir pelas magias das palavras”. Para ele, as razões atribuídas ao ódio “nada mais são do que circunstâncias favoráveis, simples ocasiões, raramente ausentes, que libera a vontade de destruir simplesmente por destruir”.
Isso atinge a própria democracia. No livro O ódio à democracia (São Paulo, Editora Boitempo, 2014) o filósofo francês Jacques Rancière analisa as contradições de alguns países democráticos e chamou de “os impasses entre a democracia como princípio e às respectivas práticas sociais, que a contradizem” que servem de pretexto para seus adversários atacá-la, mas defende a idéia de que a democracia não é um sistema representativo de caráter oligárquico, ao contrário, é um regime político cujos princípios e práticas precisam ser preservados e ampliados no sentido da equidade e liberdade. Os que querem destruir as instituições democráticas o fazem para preservar os privilégios de uma minoria que se apropria do poder e o usa em defesa dos seus interesses e não o que está na Constituição que estabelece no Art. 3º, inciso IV, que o governo deve “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
O que explica o apoio de grande parcela da sociedade a um governo que fez justamente o contrário disso? Que promoveu um desmonte das políticas públicas (e do Estado), com seus arroubos autoritários, preconceituosos, de cunho misógino e sexista, com o uso frequente de grosserias, ofensas à imprensa e desprezo pelas instituições democráticas que contribuíram para a difusão (e permanência) do ódio na sociedade?
Fazem isso porque se identifica e concorda ou porque (também) são enganados pelo uso do marketing e manipulações nas redes sociais? No livro Sobre o ódio (Editora Âyné, 2020) Carolin Emcke ela afirma ao se referir aos odiadores, o quanto eles são seguros do seu ódio: “aqueles que odeiam têm de ser seguros, caso contrário, não falariam ou agrediriam ou matariam dessa forma. Caso contrário, não poderiam menosprezar humilhar, atacar os outros assim. Eles têm de estar seguros. Sem dúvida nenhuma. Não se pode odiar duvidando do ódio. Eles não poderiam estar tão perturbados se duvidassem. É necessária uma certeza absoluta para odiar. Qualquer ‘talvez’ já seria um estorvo. Qualquer ‘possivelmente’ se infiltra imediatamente no ódio, e suga-lhe a energia que ainda está para ser canalizada”.
E quando se tem um governo que, em vez de querer pacificar o país, fez o oposto, cria (e explica em parte) o clima de ódio e intolerância que se vive hoje no país.
No livro Dilma Rousseff e o ódio político (Editora Hedra, 2015) o psicanalista Tales Ab’saber investiga o ódio à política que se desenvolveu especialmente a partir dos governos de Lula e Dilma Rousseff e mostra a emergência da extrema direita, de uma oposição autoritária marcada pelo ódio, com o apoio da grande mídia hegemônica. Para ele, há um ódio político que se sustenta em uma “distorção efetiva da capacidade de pensar”, que teria base na “necessidade de saturar a realidade com desejos que não suportam frustração, bem como no impacto corrosivo dos mecanismos psíquicos ligados ao ódio sobre o próprio pensamento”. Como diz Carolin Emcke, ao odiar o outro, “esse ‘outro’ é fabulado como um poder supostamente perigoso ou como algo supostamente inferior; e assim os maus-tratos e o desejo de erradicação subsequente do outro não são reivindicados apenas como medidas desculpáveis, mas necessárias. O outro é aquele a quem alguém pode denunciar ou desprezar, ferir ou matar impunemente”.
O discurso do ódio como diz Ab’saber opera a partir da discriminação com o objetivo de restringir direitos, usando à violência e à aniquilação das vítimas, expressas na discriminação, intolerância, preconceito e que um dos seus desdobramentos “é a perseguição, insultos e privação de direitos humanos a diversos indivíduos e grupos como os negros, os LGBTs e as mulheres”.
Hoje, depois da vitória eleitoral de Lula, que continua a ser objeto de ódio, preconceito e intolerância, é de fundamental importância combatê-los em todas suas expressões, com mecanismos legais eficazes e o ódio não é apenas contra Lula e seu governo, mas contra a democracia e nesse sentido é fundamental o combate a todas as formas de violação dos direitos, o respeito e defesa da inclusão, da diversidade, das normas e princípios de uma sociedade efetivamente democrática.