O legado do governo Bolsonaro em relação ao trabalho análogo à escravidão
No dia 22 de novembro de 2022 foi divulgado pelo Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), o resultado de uma operação que contou com a participação do Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União e Polícia Federal, na qual foram resgatados 30 (trinta) trabalhadores em Mossoró (RN) submetidos a trabalho análogo à escravidão. Uma matéria publicada no mesmo dia pela Agência Saiba Mais/RN informa que os trabalhadores resgatados atuavam na extração de folhas e pó da carnaúba, de pedras paralelepípedos e de sal marinho.
Constatou-se péssimas condições de trabalho, falta de segurança (equipamentos de proteção), cuidados com a saúde (como exames médicos e medicamentos) e moradia. Segundo a matéria, parte dos trabalhadores estava alojada em barracos de lonas (4) e outros em barracos de madeira (6); alguns pernoitavam em alpendres improvisados (2); e a maioria ficava no meio do mato, embaixo de árvores (18). Todos sem o registro de carteira assinada
Conforme a matéria os responsáveis em manter trabalhadores nessas condições, foram notificados a regularizar os vínculos irregulares encontrados; quitar as verbas rescisórias dos empregados resgatados; recolher o FGTS e as contribuições sociais previstas na lei e, como uma das providências, foi realizada parte do pagamento das verbas rescisórias (em torno de R$ 70 mil) e que os resgatados também terão direito a três parcelas de seguro-desemprego especial de trabalhador resgatado.
Segundo outra matéria sobre o tema, publicada no jornal Tribuna do Norte no dia seguinte a operação foi iniciada no dia 15 de novembro, constatando a existência de trabalho análogo à escravidão em dez estabelecimentos (em Upanema, Felipe Guerra e Governador Dix Sept Rosado), informando ainda que nos locais de alojamento, e nas frentes de serviços, não havia instalação sanitária, chuveiro, lavatório ou lavanderias. Também não havia local para o preparo, guarda e cozimento dos alimentos, tampouco local adequado para a tomada de refeições. Além disso, foi constatado que não foi disponibilizada água potável para o consumo dos trabalhadores.
Em novembro foi noticiada que um grupo de trabalhadores do município de Guamaré/RN foram aliciados para trabalharem em um laranjal no município de Ubirajara, em São Paulo. Eram vinte e oito (26 homens e 2 mulheres) que haviam chegado à fazenda no dia 28 de setembro, com promessas de carteira assinada, salário mínimo, boas condições de trabalho etc., e ao chegarem lá e começarem a trabalhar, perceberam que foram vítimas de um golpe, nem carteira assinada, salário fixo (o que foi pago não correspondia nem a metade do salário mínimo), além de péssimas condições de moradia, alimentação, jornada de trabalho exaustiva e que só conseguiram retornar a Guamaré com a ajuda de familiares.
No Rio Grande do Norte, entre 2018 e 2019, foram resgatados 43 trabalhadores de condições definidas no Código Penal como análogas às de escravidão, constatada a existência de condições degradantes de trabalho, como falta de local apropriado para dormir, de alimentação adequada, além de não serem cumpridos os horários de pausas e descansos.
Isso também ocorreu em outros estados. Para ficar em apenas um exemplo, uma matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo por Circe Bonatelli no dia 21 de novembro de 2022 informa que a MRV, maior construtora residencial da América Latina, assinou um acordo com o governo federal em que se dispõe a pagar em torno de R$ 10 milhões para encerrar processos em que contestava autuações por infrações a direitos trabalhistas. O acordo foi fechado após um histórico de mais de dez anos de autuações por parte de auditores fiscais do trabalho, mas que nunca foram reconhecidas pela MRV. Em 2021 a empresa foi autuada por submeter trabalhadores a condições análogas à escravidão em Contagem (MG) em 2013; Macaé (RJ), em 2014; e Porto Alegre e São Leopoldo (RS)
Historicamente a primeira Lei no Brasil que tipifica o crime é o Código Penal de 7 de dezembro de 1940, que no artigo 149, estabelece que é crime “Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalhando, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto” com pena de reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência e é aumentada de metade, se o crime é cometido contra a criança ou adolescente e ainda por motivo de preconceito de raça, cor etnia, religião ou origem.
Depois disso só em 1995, no primeiro ano do primeiro governo de Fernando Henrique Cardoso, 107 anos depois da abolição oficial da escravidão, o Brasil assumiu oficialmente, perante a Organização Internacional do Trabalho (OIT) a existência de trabalho escravo em seu território e foi criado o Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM) para atuar em todo território nacional.
No Congresso Nacional, inúmeros projetos foram apresentados tanto para combater o trabalho análogo à escravidão, como a atuação da (influente) bancada ruralista em defesa dos interesses dos proprietários rurais, especialmente em relação a uma proposta que tratava da desapropriação de imóveis quando configurada a existência do trabalho escravo. No entanto, com o voto (em primeiro turno) do então deputado Jair Bolsonaro, no dia 6 de junho de 2014, foi promulgada uma Emenda Constitucional (n.81) que trata do tema. Alterou-se o artigo 243 da Constituição Federal de 1988, estabelecendo que “as propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei”. Ao ser eleito presidente, Bolsonaro passou a ser contra e deu não apenas inúmeras declarações nesse sentido, como consta no programa de governo apresentado em 2018.
O problema é que a PEC nunca foi regulamentada e há poucos exemplos de desapropriação por trabalho escravo, oito anos depois de sua aprovação.
De qualquer forma, o trabalho escravo continua a existir no país. Entre 1995 e 2016, segundo levantamento do Ministério do Trabalho e da Comissão Pastoral da Terra, divulgado pela ONG “Escravo, Nem Pensar!”, mais de 52 mil trabalhadores foram resgatados de condições análogas à escravidão (a maioria das vítimas era do sexo masculino e com idade entre 18 e 24 anos).
Assim, tanto a legislação, como iniciativas de combate a trabalho escravo antecede o governo Bolsonaro. Mas, em quatro anos do seu governo, o que foi feito? Qual o balanço do governo que o escritor e jornalista Ruy Castro no artigo O covarde em questão, publicado no dia 24/11/2022 no jornal Folha de S. Paulo, chamou de “quatro anos de meticulosa demolição do país”? Esse processo de demolição atingiu todas as áreas, na cultura, educação, saúde, meio ambiente, Direitos Humanos etc. e uma de suas expressões foram as frequentes diminuição de verbas para essas áreas, que incluiu, também verbas para o combate ao trabalho análogo à escravidão. Uma matéria publicada em 2021 no Observatório do Terceiro Setor por Isabela Alves afirma que a verba para combater o trabalho escravo no Brasil teve uma redução de 41% em relação a 2020, o menor valor dos últimos 10 anos (conforme a matéria, os dados são do Ministério da Economia e foram obtidos via Lei de Acesso à Informação com exclusividade pelo portal G1). E informa ainda que em 2020, o valor foi à metade do despendido dois anos antes (https://observatorio3setor.org. br/noticias/verba-para-combate-ao-trabalho-escravo-diminuiu-40-na-pandemia/).
Em 2019, no primeiro ano do governo, o número de denúncias de trabalho análogo à escravidão aumentou, totalizando 1.213 em todo o país, enquanto em 2018 foram 1.127 (Os dados são do sistema informatizado do MPT – MPT Digital/Gaia).
Segundo a Subsecretaria de Inspeção do Trabalho, em 2019, foram fiscalizados 267 estabelecimentos, sendo encontrados 1.054 trabalhadores em condições análogas à escravidão no Brasil. De acordo com o site Radar SIT, da Subsecretaria de Inspeção do Trabalho (SIT), do Ministério do Trabalho e Previdência, 936 trabalhadores em condições análogas à escravidão foram resgatados.
Segundo dados obtidos pela Agência Senado, entre 2016 e 2020, o Ministério Público do Trabalho (MPT) recebeu mais de seis mil denúncias relacionadas ao trabalho escravo, além de aliciamento e tráfico de trabalhadores e só em 2020, mais de 900 trabalhadores foram resgatados de situações análogas ao trabalho escravo.
Em 2021, dados do Ministério do Trabalho e Previdência indicam que foi à maior alta desde 2013 e um aumento de 106% em relação a 2020. Destes 89% trabalhavam em áreas rurais, como na produção de café, cultivo de fumo, algodão, soja, erva-mate, batatas, cebolas, cana e laranja, fabricação de farinha de mandioca, no cultivo e extração de florestas nativas, na produção de carvão, e também em siderurgia, construção civil e em oficinas de costura, entre outros lugares.
No dia 6 de agosto de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) estabeleceu que não fosse necessário provar a coação física da liberdade de ir e vir ou mesmo o cerceamento da liberdade de locomoção para configurar o crime de trabalho escravo previsto no artigo 149 do Código Penal Brasileiro (CPB). Basta à submissão da vítima a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador
Em 2022, os resgates, segundo o Painel de Informações e Estatísticas da Inspeção do Trabalho no Brasil cresceu em relação a 2021 e aumentou para 59.231 trabalhadores resgatados (https://sit.trabalho. gov.br/radar/).
Os dados e alguns exemplos citados mostram que depois de 134 anos após a abolição formal da escravidão no Brasil (maio de 1888) continua a haver trabalhos escravo ou trabalho em condições análogas à escravidão. Trata-se da herança do período da escravidão, de uma sociedade que conviveu por mais de três séculos com a escravidão, naturalizando-a (apesar de resistência de muitos escravizados) e que construiu o mito da democracia racial, e cuja permanência se deve a manutenção (e ampliação) das desigualdades sociais, políticas e econômicas.
O legado do governo Bolsonaro em relação ao combate ao trabalho análogo à escravidão, assim como em outras áreas, depõe contra: o que se constatou ao longo do mandato foi à ampliação da precarização do trabalho, aumento da pobreza e da miséria, flexibilização na legislação trabalhista, a suspensão de ações, verbas e fiscalizações preventivas do Ministério do Trabalho. Trabalho escravo é crime, uma grave violação dos direitos humanos que não pode nem deve ser tolerada, porque não apenas restringe a liberdade das pessoas como atenta contra a dignidade humana.
Foto: De olho nos ruralistas