O essencial em tempos de cólera

Por Daniel de Macedo

Nos dicionários é dada a seguinte significação ao termo normal: ‘’1. Conforme a norma, a regra, regular, 2. que é usual, comum, natural’’.

Decididamente o tal novo normal é um fracasso a começar pela mensagem que comunica. Não é usual, tampouco natural o convívio com restrições tão severas e tão distantes dos costumes. Existem em nível da governança global da pandemia, indicativos de que buscando na ciência e nas melhores práticas de gestão da crise as melhores ferramentas, as restrições serão transitórias, e o problema será solucionado.

Percebam, não há solução espontânea do problema. É como jogar um jogo, e vencê-lo fazendo uso das ferramentas adequadas, conforme as circunstancias. Quem quer resolver problemas não nega ou desconsidera as circunstancias, mas, trabalha melhor quanto melhor compreende a conjuntura.

Entramos em colapso. Colapso aqui não precisa ser descrito com o significado exato dos dicionários. Entrar em colapso, me permitam, é jogar roleta russa. O jogo é letal, compulsório, as vítimas são indefinidas e todos estão expostos – isso mesmo, quem nega ou assume o problema e reconhece as circunstancias graves, todos expostos.

A Grande João Pessoa se mantém no perigoso patamar de ocupação de leitos de UTI acima de 80%. Essa semana o Ministério da Saúde reconheceu que ainda em março o número de mortos decorrentes da COVID 19 e suas variantes pode chegar a 3 mil vidas por dia.

Estamos em colapso, repito.  Os governos tem muito o que fazer, e devem ser cobrados, especialmente para implementar um plano de vacinação integral da população de forma eficiente. Porém, a cobrança por mais vacinas, no ponto em que nos encontramos, não resolve uma urgência imediata: precisamos construir um pacto que defina o que é necessário, adequado, prioritário e urgente. Enfim, o que é essencial?

No momento em que o entendimento sobre a importância das medidas restritivas se impõe como pauta de ontem, de tão urgente, a Câmara Municipal de João aprovou medidas que garantem que escolas e academias permaneçam abertas, e reconhece atividades religiosas como serviços essenciais. As tais medidas sanitárias que envolvem a abertura desses espaços podem ter a eficácia medida pelos números.

A aprovação dos projetos de lei ocorreu sem amplo debate social, e tão ou mais grave, não se baseia em qualquer evidencia científica. Atende tão somente ao apetite político da atual composição da Câmara Municipal de João Pessoa.

É possível um debate sobre a constitucionalidade das medidas aprovadas a toque de caixa pela CMJP. Porém, entendo que precede qualquer questionamento a compreensão do que é essencial quando o resultado da equação implica em mais ou menos mortes.

É esta a essencialidade que estamos discutindo. Convoquem uma coletiva senhores vereadores e senhora vereadora.  Comuniquem à população com base em que evidencias a decisão tomada é a que protege vidas. Não arrastem o rebanho ao precipício com demagogia.

Se existirem evidencias de que escolas, academias e igrejas não são ambientes de alta propagação do vírus, nos mostrem, e permitam que sejam refutadas. Isto nada mais é que o cumprimento do juramento que vocês fizeram quando assumiram seus mandatos.

E quero aqui deixar claro: ninguém é contrário à retomada das atividades, mas, é preciso que a flexibilização continue ocorrendo de forma dinâmica conforme o quadro, não com uma Lei que reconheça atividades essenciais, acima de qualquer decisão que o executivo precise tomar.

Na democracia representativa decisões difíceis precisam ser tomadas, e no terreno da política o poder trás a responsabilidade de conter a histeria coletiva, e fazer com que o povo entenda que medidas difíceis, quando adequadas, necessárias e urgentes, devem ser tomadas. Percebam: é preciso decidir e fazer entender.

Não é o momento de dialogar apenas com suas bases, mas de pensar no impacto dessas decisões sobre a totalidade da população. É a serviço de todos do povo que os mandatos dos vereadores e vereadora de João Pessoa devem ser exercidos.

Hoje não escrevo para afirmar, embora tenha inclinações e posicionamentos, mas para fazer a provocação que me permite o farrapo de democracia que nos resta: venham ao povo, não com discurso de palanque, não para defender suas convicções pessoas, pois ambos são ferramentas inadequadas para definir o que é essencial. Venham ao povo, e digam com base em que evidencias foi tomada a decisão que considera a essencialidade dessas atividades, neste momento em que nos situamos.

Convençam o povo de que as medidas aprovadas não vão aumentar os números de casos, de mortes, de ocupação de leitos. Tragicamente histórias de vida ficam reduzidas à números.

O debate sobre o essencial em tempos de cólera é covarde, pois busca apoio não na ciência, mas na miséria em que afunda nosso povo. A flexibilização ocorre para atender interesses econômicos, cuja formula exata para conciliação com a defesa da vida é o fortalecimento de um sistema de proteção social que garanta subsistência enquanto for urgente e necessário.

Encarem o debate de frente, decidam com base em evidencias, respondam ao povo munidos de evidencias e com clareza.

Historicamente a fé e o sagrado foram utilizados como mercadoria política diversas vezes. No ocidente, desde o holocausto a morte não é tão amplamente naturalizada em nome de algo maior e imprescindível. Talvez haja passado tempo o suficiente para que tenhamos esquecido as lições que a história nos ensinou. Talvez por isso ela se repita, implacavelmente.

Me permitam separar o sagrado deste debate, pois não é de fé que falamos, mas das decisões que precisam ser tomadas, e cuja necessidade precisa ser compreendida a partir das evidencias, da realidade crua, dos mortos e enfermos, das circunstancias enfim.

Senhores vereadores, senhora vereadora: se expliquem ou assumam a conta das mortes causadas pela negação. Haverá quem sobreviva para registrar que algo podia ser feito e não foi, e nesses registros haverá nomes.

Enquanto escrevo para esta coluna, a Paraíba registra 4.632 mortes e 88% dos leitos de UTI estão ocupados na Grande João Pessoa. Não é momento de disputa de narrativa, pois a crônica do nosso tempo revela famílias enlutadas. Revelam ao povo como lidam com isso.