Espiritualidade, saúde e a política que permeia esses espaços – Parte I
A política permeia nossa existência em diversas perspectivas, até naquelas que a gente, muitas vezes, não percebe. Exatamente por isso, trago hoje uma releitura de um texto que publiquei junto com Renata Shirley Ferreira na REVER: Revista de Estudos da Religião da PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Creio que, na atual conjuntura pandêmica e em meio ao negacionismo, nunca é demais falar sobre a ciência e seus entrelaçamentos. No entanto, por ser um tema complexo e uma discussão que merece profundidade, vou dividir a coluna em duas partes, esperando que na próxima coluna possamos concluir o texto, mas não exaurir o tema, claro!
Em um primeiro momento, ao se falar sobre espiritualidade, a primeira imagem que vem à cabeça relaciona-se, geralmente, com religiosidade, tendo em vista que a fé em algo não-humano, algo ‘sobrenatural’ sempre se atrela a algo institucionalizado, como é o caso da religião. Csordas (2008, p. 15) afirma sobre essa relação, que “o humano invoca poderes ou entidades que por definição eram tudo, menos humanos”, podendo ser xamãs, curadores, feiticeiros, pais de santo, juremeiros, dentre outros de diversas religiosidades diferentes, nas diferentes experiências do sagrado ou com o sagrado. Apesar disso, a espiritualidade não está, necessariamente, ligada a quaisquer religiões, ela faz parte do processo existencial do ser humano que busca a cura de suas aflições, sejam elas físicas ou não.
O pensamento cartesiano inaugurado pelo filósofo René Descartes e que marca o período da filosofia moderna, parte do paradigma do cogito ergo sum (penso, logo existo), onde o Eu, a substância pensante – res cogitans – está presa a um corpo – res extensa, estabelecendo, de tal forma, uma dualidade, uma dicotomia na forma de pensar o homem (DESCARTES, 1979), enquanto a espiritualidade, como atividade integrativa e existencial, pensa o homem como um todo. O cartesianismo influenciou todo ocidente centrado em uma perspectiva eurocêntrica, no entanto, o mundo contemporâneo sentiu a lacuna de sua exiguidade científica e próprio estatuto científico postulou o surgimento de novos paradigmas científicos, relacionando-se com outros saberes que até então, não eram inclusos na gênese científica.
O conceito de educação foi ampliado para uma perspectiva integralista e multidimensional nas últimas décadas e tais mudanças implicaram em alterações no conceito de saúde, que passa a ser entendida como algo que integra em si o físico, o psíquico, o social e o espiritual, no entanto, tais mudanças teóricas nem sempre são observadas na prática. Na educação a transformação proporcionou uma sociedade mais participativa, integrativa e humana, estando ligada diretamente as questões de saúde, sensibilidade ambiental, consciência e qualidade de vida, sendo, portanto, uma dimensão da vida. No entanto, essa perspectiva tem sido, em partes, mutilada pela tesoura do capitalismo, mesmo diante da consciência político-social de que a educação é o único meio pelo qual se pode alcançar a dignidade humana.
O conceito de saúde, por sua vez, influenciado por tais mudanças no modo de ver a educação, passa a ser visto de forma mais ampla, não sendo apenas a ausência de doença. Em 1978, na conferencia internacional sobre cuidados básicos de saúde promovido pela Organização Mundial de Saúde – OMS, a saúde passa a ser considerada o completo bem estar físico, mental e social. Tais mudanças geraram a necessidade de atualização e adequação dos profissionais de saúde para compreender a pessoa em sua totalidade.
Em 1986 a educação em saúde passa a ser fator imprescindível à promoção da saúde, numa perspectiva multidisciplinar de atuação coletiva e individual de atual, a partir de uma visão positiva da saúde. Além disso, as mudanças socioeconômicas, a evolução dos fatores de risco e a nosologia (ramo da medicina que estuda e classifica as doenças), contribuíram para as alterações no conceito e na forma de educar para a saúde, sendo a educação crítica, ou de foco integral, influenciada pelo humanismo e pelo método dialógico freiriano, o modelo mais amplo e provavelmente mais benéfico de acordo com suas características.
As ciências das Religiões buscam entender a sociedade, a cultura, o pensamento de um determinado grupo ou civilização a partir da ótica da fé e da crença local; a religião como fato social na perspectiva da espiritualidade e/ou de seus mitos religiosos (CAMPBELL, 2015), sejam eles institucionalizados ou não, tendo em vista que os dogmas religiosos, assim como as crenças na espiritualidade, dizem muito da história da humanidade e do homem em si mesmo. Já no contexto da espiritualidade, a relação com a saúde é algo que sempre esteve presente, tendo em vista que a unidade da razão humana não é referente apenas à história, mas também a espiritualidade ou ao misticismo, para usar o vocabulário de Campbell (2015), ou mesmo a magia, precursora da ciência empírica.
A antiga relação com a espiritualidade, após a necessária revisão do cartesianismo, passou a ser revista recentemente e a saúde passa a ser vista de forma mais abrangente, holística. Nessa relação, viu-se a necessidade de educar para a saúde, conscientizar sobre a condição tripartite da humanidade e, assim, a saúde passa a ser vista também, como algo que engloba vários segmentos porque sua natureza é uma conjunção de fatores. Dentre estes fatores, além do corpo, da anatomia, percebeu-se que sua fisiologia complexa tem o aspecto mental e espiritual, muito embora o positivismo cartesiano eurocêntrico não estimule nem aceite essa perspectiva do termo saúde.
Nesse contexto do paradigma conceitual da saúde nos moldes ocidentais, a educação vem sendo ressignificada ao longo das últimas décadas para uma abordagem integralista. A forma de se ver e de se relacionar com a saúde mudou, e embora esta mudança tenha impacto indireto nas comunidades desfavorecidas, ela tem importantes desdobramentos sociais que só serão percebidos mais adiante, assim como ocorreu no passado para que hoje possamos discutir academicamente a relação educação x saúde x espiritualidade.
Essa perspectiva sobre a espiritualidade, embora seja algo recente para o “mundo” ocidental, no que tange a ser um objeto de estudo acadêmico, e mesmo sendo parte das heterodoxias terapêuticas (TAVARES, 2016) dos povos tradicionais como os indígenas e estando presente nas religiões afro-ameríndias, vem ganhando espaço nos estudos antropológicos e nas ciências das religiões em várias partes do mundo, no entanto, é importante destacar que, tanto nos países geograficamente situados no oriente, quanto nos países do continente africano, o conceito de espiritualidade sempre fez parte da existência subjetiva das pessoas de alguma forma.
No oriente, talvez devido à existência de práticas milenares como a meditação e o yoga, há maior difusão sobre a relação da espiritualidade com a saúde e o bem estar do que no ocidente. Segundo Telesi Junior (2016, p 103), “a essência da filosofia oriental foi o alicerce das chamadas medicinas tradicionais orientais, em especial a chinesa”. O autor, que é médico sanitarista e possui doutorado em saúde pública, afirma que essa concepção oriental da medicina holística adotada no Brasil através das Práticas Integrativas Complementares – PIC’s, possui elementos cosmológicos que “desempenham um papel importante na determinação das constituições individuais, enquanto para a racionalidade médica ocidental o elemento cosmológico é desconsiderado, já que desprovido de base científica” (TELESI JÚNIOR, 2016, p. 104). A base científica, nesse caso, é o conceito cartesiano estabelecido que, por outro lado, desconsidera a eficácia de tratamentos integrativos, embora ocorra a melhora na qualidade de vida ou mesmo nos sintomas de muitos pacientes.
No continente africano a percepção dessa relação com a espiritualidade geralmente se dá no contexto da religiosidade, no entanto, a ligação entre ancestralidade e espiritualidade existe também fora do contexto religioso, passando pelo contexto cultural e mesmo epistemológico, expresso através do termo ubuntu, associado à África Subsaariana e às línguas bantu, e que, segundo o filósofo Magobe Ramose (2003), é uma metafísica africana cuja base é a ontologia dos seres vivos, bem como uma ética que relaciona a minha existência a partir de outras existências, em um ambiente de coletividade, do entendimento que “as culturas e as tradições africanas constituem-se através da comunicação com as várias formas de espiritualidade” (DANTAS, 2018).
As mudanças ocorridas ao longo dos anos possibilitam uma visão mais holística da pessoa e desconstrói certos aspectos rígidos do paradigma cartesiano para abordar o outro de forma humana e multidimensional, envolvendo a comunidade, o governo no que tange a criação de políticas públicas e a educação em saúde é o motor de capacitação para que a saúde seja um bem acessível, de forma permanente e comunitária, em todas as dimensões do indivíduo. Essas são relações políticas que atualizam relações de outras perspectivas como as relações religiosas e formas de ver a pessoa humana em diversas perspectivas como é o caso do aspecto religioso, espiritual que se redimensiona de acordo com os movimentos de cultura de uma civilização. O que não se pode perder de vista? Que estamos em constante movimento buscando soluções para a humanidade em toda sua pluralidade, e a ciência é uma das grandes aliadas da vida, mesmo que ela não tenha respostas para tudo, assim como a filosofia não o tem. As respostas vêm da capacidade dialógica do ser humano que deve sempre buscar o bem coletivo e entender humildemente, que ainda temos um longo caminho pela frente, mas que esse caminho só continuará a existir, se respeitarmos a vida coletivamente em todos os seus aspectos, e as pessoas em sua individualidade e integralidade existencial, espiritual e política.
Referências:
CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: Mitologia Criativa, Vol. 4. 2 ª ed. São Paulo: Palas Athena, 2018.
CSORDAS, Thomas. J. Corpo/Significado/Cura. Trad. José Secundino da Fonseca e Ethon Secundino da Fonseca. Porto alegre: Editora da UFRGS, 2008.
DANTAS, Luis Thiago Freire. Filosofia desde África: perspectivas descoloniais. Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio Valentim. 2018. 231 f. Tese (Programa de Pós Graduação em Filosofia) – Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2018.
DESCARTES, René. Meditações Metafísicas/Discurso do Método. São Paulo: Abril, 1983. (Os Pensadores).
NEGREIROS, Regina; FERREIRA, Renata Shirley. Antigos paradigmas e novas possibilidades: perspectivas plurais integrativas da espiritualidade e saúde a partir das PICs e da noção africana do Ubuntu. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/index.php/rever/article/view/50680. Acesso em 11 Ago 2021.
RAMOSE, Magobe. The ethics of ubuntu. In: COETZEE, P. H.; ROUX, A.J. (org.) African Philosophy Reader. London: Routledge, 2003.
TAVARES, Fatima Regina. Curas religiosas, questões de crença e os limites da pesquisa. HORIZONTE. 14. 173. 10.5752/P.2175-5841.2016v14n41p173. 2016. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/299545704_Cura_religiosa_questoes_de_crenca_e_os_limites_da_pesquisa. Acesso em 12 out. 2019
TELESI JUNIOR, Emílio. Práticas integrativas e complementares em saúde, uma nova eficácia para o SUS. Estud. av., São Paulo , v. 30, n. 86, p. 99-112, Apr. 2016 . Disponível emhttp://www.scielo.br/pdf/ea/v30n86/0103-4014-ea-30-86-00099.pdf. Acesso em 15 Oct. 2019.