Discursos de ódio em ambientes digitais
As novas tecnologias trouxeram inúmeros benefícios, com a expansão da internet e das redes digitais, interligando pessoas, facilitando acesso ao conhecimento (dissertações, teses, ensaios, artigos, livros etc.,) mas por outro lado, também se tornou um espaço para que pessoas, protegidas pelo anonimato, utilizem para expressar ódios, discriminações e incitação à violência.
E foi justamente com o objetivo de combater mais especificamente os discursos de ódio nas redes sociais que em 2020 a Fundação Getulio Vargas publicou o Guia para Análise de Discurso de Ódio, resultado de uma pesquisa feita entre 2017 e 2019 pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP em parceria com a Confederação Israelita do Brasil (CONIB) sobre discurso do ódio. O objetivo era “o esclarecimento conceitual do discurso de ódio por meio da construção de uma matriz de variáveis que servem para a identificação, avaliação e sancionamento em casos concretos”.
A definição proposta pelo Guia é que os discursos de ódio “são manifestações que avaliam negativamente um grupo vulnerável ou um indivíduo enquanto membro de um grupo vulnerável, a fim de estabelecerem que ele seja menos digno de direitos, oportunidades ou recursos do que outros grupos e indivíduos membros de outros grupos, e consequentemente, legitimar a prática de discriminação ou violência”. Fundamentalmente a restrição de direitos, tanto pelo estímulo à discriminação quanto à agressão física.
E o conceito pode ser ampliado, incluindo comparações degradantes, deboche e negacionismo de situações históricas, insultos, ofensas, calúnias, desqualificação de pessoas, grupos ou instituições, expressões de desprezo, repugnância ou rejeição, xingamentos e apelos à exclusão ou segregação.
E em sociedades com grande polarização política, como o Brasil hoje, também criou as condições para que se organizassem comunidades especializadas em discursos de ódio tendo como alvo pessoas públicas (políticos, artistas etc.) assim como a formação de grupos de extrema direita e nazifascistas que antes não tinham esse espaço e com ele ampliaram seu alcance, especialmente através das redes sociais.
Uma matéria publicada no dia 29 de junho de 2020 no portal Terra se refere à antropóloga Adriana Dias, doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que pesquisa movimentos de extrema direita no Brasil e que “identificou um crescimento tanto no número de células neonazistas quanto no engajamento de seus integrantes nos últimos seis meses”.
Na sua tese de doutorado, defendida em 2018 intitulada Observando o ódio – entre uma etnografia do neonazismo e a biografia de David Lane ela mostra como esses grupos se organizam e se expressam especialmente na internet e que: “O nazismo e o neonazismo criam e recriam seus ―outros: o negro, o judeu, o débil, a mulher, o pervertido (o gay, a lésbica), o aleijado, o louco. Todos improdutivos, inferiores, fora da norma. Cada um deles, menos humano. Racismo, machismo, homofobia (…) são narrativas sociais que imputam menos humanidade a cada outro. Menos humanidade, menos capacidade, menos direitos”.
São grupos que fazem campanhas contra nordestinos, negros, homossexuais e judeus, entre outros, que se ampliaram com o avanço da internet e fazem uso das redes sociais para difundir suas concepções (ódios, preconceitos, incitamento à violência etc.).
No entanto, é fato que os discursos de ódio não foram criados pelas redes sociais, mas é inegável que diferentes mídias e em particular as digitais, possibilitam as condições para sua disseminação, ou seja, as redes sociais não fazem mais do que reafirmar e ampliar os que as pessoas realmente são.
A expansão das redes digitais criou novos desafios sobre o que pode e deve ser feito. Como garantir a liberdade de expressão e ao mesmo tempo coibir os abusos cometidos em nome dessa liberdade? Se de um lado o Estado deve garantir a livre expressão de todos, por outro não pode nem deve tolerar discursos de ódio ou violentos que ataquem às pessoas e instituições democráticas. A liberdade de expressão não pode ser usada como pretexto para isso, ou seja, o direito à liberdade de expressão, não pode ser exercida de forma abusiva, quando fere um princípio fundamental que é o da dignidade humana e no mais das vezes, sem o direito de defesa.
A questão relevante assim é: como minimizar ou impedir as condições que facilitam e estimulam o discurso de ódio? Como punir os responsáveis? A tolerância numa sociedade democrática é fundamental, mas ela, como pressuposto, não pode e nem deve tolerar o intolerante, idéias, expressões e atos que atentem contra a dignidade das pessoas e estimule o ódio, preconceitos e a violência.
Nesse sentido há duas questões relevantes: a necessidade de se garantir a liberdade de expressão, como um valor fundamental da democracia, e por outro lado a necessidade de ser ter instrumentos eficazes para se combater todas as formas de violência e intolerância que o ambiente digital possibilita, motivado pelas mais variadas formas de preconceitos e que são facilitadas pelo anonimato dos usuários.
Um documento publicado pela Fundação Getulio Vargas, em março de 2021 Discursos de ódio em ambientes digitais: definições, especificidades e contexto da discriminação online no Brasil a partir do Twitter e do Facebook resultado de uma pesquisa que analisou dados de cerca de 11 milhões de postagens no Twitter e 34 mil postagens no Facebook, entre novembro de 2020 a janeiro de 2021 afirmam que “as mídias digitais facilitam a hostilidade impulsiva, massiva e sem barreiras geográficas”. (A pesquisa é ampla incluindo conceitos, revisão da literatura – fontes bibliográficas e documentais – a legislação, as formas de definição e auto-regulação propostas pelas plataformas, identificação dos principais atores e interações ocorridos no curso do período da pesquisa nas duas plataformas digitais etc. e está disponível em https://democraciadigital.dapp.fgv.br/wp-content/uploads/2021/03/Estudo-3_Discurso_de_Odio_PT.pdf).
O artigo A gestão do discurso de ódio nas plataformas de redes sociais digitais: um comparativo entre Facebook, Twitter e Youtube de Luiz Rogério Lopes Silva, Rodrigo Eduardo Botelho-Francisco e Alisson Augusto de Oliveira Vinicius Ramos Pontes publicado na Revista Ibero-Americana de Ciência da Computação (Brasília, v. 12, n. 2, p. 470-492, maio/agosto 2019) é resultado também de uma pesquisa – relativa aos anos 2015-2018 – na qual comparam as ações realizadas pelo Facebook, Twitter e Youtube quanto à formulação e ampliação de políticas e decisões sobre conteúdo individual de ódio, analisando as políticas e termos de compromisso que as empresas assumiram com a Liga Anti-Difamação, em 2013, no combate ao discurso de ódio online.
E os resultados apontaram o Facebook como o que mais investiu em estratégias de combate a intolerância e incivilidade online embora, de modo geral, todas evoluíram “na estrutura operacional de denúncia de conteúdo odiento”. No entanto, é importante destacar, salientam que se mostraram ineficientes em moderação, remoção e contenção da propagação do cyberhate: “As sanções aplicadas ainda estão sendo aprimoradas e que a exclusão da conta e a proibição de criar outra (…) é o máximo que o interagente violador pode sofrer, exceto em casos que envolvem as autoridades locais”. E não havendo punição, claro, só pode servir de estímulo para a reincidência.
No artigo O mito da tolerância publicado no dia 3 de agosto de 2016 no jornal Folha de S. Paulo Bob Vieira da Costa, sócio-fundador da agência de propaganda Nova/SB afirma que “A internet vem ajudando a derrubar o mito de que nós brasileiros somos tolerantes às diferenças. Histórias que desnudam a intolerância entre nós surgem a cada dia. Para cada caso com pessoas conhecidas noticiado na mídia, há outros milhares nas redes sociais”.
Entre outras expressões preconceituosas que são usadas nas redes estão “Cabelo ruim, gordo, vagabundo, retardado mental, boiola, malcomida, golpista, velho, nega. Expressões como essas predominam nas nuvens de palavras encontradas em posts que revelam todo tipo de intransigência ao outro, em vários aspectos: aparência, classe social, deficiência, homofobia, misoginia, política, idade, raça, religião e xenofobia”.
E informa algo que já se sabia na época e que continuou a ocorrer: “o Brasil lidera as estatísticas de mortes na comunidade LGBT (dado da Associação Internacional de Gays e Lésbicas); mata muito mais negros do que brancos (Mapa da Violência); aparece em quinto lugar em homicídios de mulheres (Mapa da Violência); registrou aumento de 633% nos casos de xenofobia (Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos); e 6,2% dos seus empregadores confessam não contratar pessoas obesas (site de recrutamento)”.
E também informa que o Comunica que Muda fez um levantamento sobre a intolerância na internet durante três meses, abril a junho de 2016 no Facebook, Twitter e Instagram no qual foram identificadas 393.284 menções aos mais variados tipos de intolerância e o percentual com abordagens negativas, de exposição de preconceitos e discriminações foi de 84%. No caso do racismo, chegou a 97,6%.
O maior número de menções (220 mil) foi para a política, seguido da misoginia (50 mil), ou seja, discursos de ódio contra as mulheres: “Muitos internautas parecem não entender que lugar de mulher é onde ela quiser, e a misoginia se alastra pelas redes. Assédio, pornografia de vingança, incitação ao estupro e outras violências são, por vezes, travestidos de “piadas” que são curtidas e compartilhadas, reforçando no ambiente virtual o machismo presente na sociedade. Ao todo, foram coletadas 49.544 citações que abordavam as desigualdades de gênero, sendo 88% delas com viés intolerante”. (https://www.comunicaquemuda.com.br/o-mito-da-tolerancia/Internet).
A questão é: quais as estratégias para desarticular as discriminações on-line? Que medidas de prevenção são eficazes para coibir a ocorrência do discurso de ódio ou de mitigar seus efeitos e limitar seu alcance?
Do ponto de vista legal, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos defende que a apologia ao ódio racial, nacional e religioso é crime legalmente punível. Em todos os países, os grupos que são alvos de discursos de ódio são basicamente de minorias e em situação de vulnerabilidade social e econômica.
No Brasil, a Constituição garante a livre manifestação de pensamento como um dos direitos fundamentais, mas eles não são absolutos quando outros direitos são violados ou ameaçados e, portanto, prevê que há limitações. No direito penal, o artigo 20 da lei 7.716/89) criminaliza condutas que podem ser consideradas discursos de ódio, como crime o induzimento e incitação à discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, assim como da injúria utilizando referências à raça, cor, etnia, religião, origem ou condição de pessoa idosa ou portadora de deficiência (artigo 140, § 3º do Código Penal).
Este me parece ser o caminho. Punir os que usam as redes sociais com discursos de ódio e incitamento à violência porque fere um princípio constitucional. Não se pode e nem se deve aceitar conteúdos que ataquem alguém com base em raça, etnia, nacionalidade, orientação sexual, política, religião, etc.