Direito Cultural, Direitos Humanos e Ancestralidade
Fui convidada recentemente para uma conversa via Instagram com as mulheres do Projeto Lis – Liberdade, Igualdade e Sororidade – no IV Festival da Lua Negra, sobre Direitos Culturais. Na coluna de hoje trago para reflexão o texto que apresentei nessa “live”, onde também estavam presentem a multi-artista Isadroga e a pastora luterana Cibele Kuss, além da mediadora Paloma Alcantara. Acredito que esse seja um debate importante e necessário para repensarmos nossa existência, olhar pra dentro e fazer um movimento de retorno ao lugar de nossa origem, em referencia ao conceito africano que se refere o termo sankofa, ideograma adinkra que significa que nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou atrás.
Os direitos culturais são parte integrante dos direitos humanos, tendo sido, no plano internacional, previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão da Assembleia Geral das Nações Unidas, no dia 10 de dezembro de 1948, estabelecendo, pela primeira vez, a proteção universal dos direitos humanos, independentemente de raça, sexo, sexualidade, nacionalidade, etnia e religião. Apesar do marco positivo na história da humanidade, há aqui a primeira incongruência indicada no título da declaração: “Direitos do Homem e do Cidadão”. O título em si é excludente, mas isso é próprio do espírito de época tendo em vista que, na acepção da palavra, se referia aos direitos dos “seres humanos”. No Brasil, na mesma década, as mulheres lutavam para conquistar o direito ao voto, o que se deu apenas em 1946, após intensa campanha pela cidadania plena, reforçando a busca pela representatividade nos espaços de poder.
A Constituição Federal brasileira de 1988, pouco mais de quatro décadas após as mulheres brasileiras conquistarem o direito ao voto, estabeleceu em seu artigo 215, a todas as pessoas a garantia por parte do Estado ao pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, com apoio e incentivo a valorização e a difusão das manifestações culturais.
Em nível mundial, a implementação de políticas objetivando a garantia dos direitos culturais foi adotada pela UNESCO em 2001, a partir da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural. No documento são reafirmados os direitos das pessoas pertencentes às minorias à livre expressão cultural, observando e enfatizando que ninguém pode invocar a diversidade cultural para violar os direitos humanos nem limitar o seu exercício, reafirmando as garantias individuais e coletivas ao direito cultural.
Mas o que de fato são direitos culturais? Não há um consenso sobre a definição do termo, até pela fluidez do próprio conceito de cultura, o que abre um leque de possibilidades sobre o assunto. Na Constituição Federal brasileira, é possível encontrar alguns indicadores como o direito autoral, direito à liberdade de expressão, a atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, direito à preservação do patrimônio histórico e cultural, direito à diversidade e identidade cultural e o direito de acesso à cultura. Fernandes (2008, p. 207) afirma que direitos culturais são aqueles em que “o indivíduo tem em relação à cultura da sociedade da qual faz parte, que vão desde o direito à produção cultural, passando pelo direito de acesso à cultura até o direito à memória histórica”. É nesse ponto da memória histórica que gostaria de pautar nosso diálogo, dentro do nosso vínculo com a memória e a ancestralidade como elementos construtores do cotidiano e da identidade; como marco identitário existencial, algo que nos mostra quem somos, o que somos, onde estamos e pra onde vamos. A identidade ancestral e seu reconhecimento como direito cultural é uma possiblidade de libertação do colonialismo patriarcal que subalterniza e invisibiliza os grupos minorizados socialmente.
Ancestralidade se refere aos nossos antepassados, àqueles que nos antecederam na nossa linhagem. É o ciclo contínuo da nossa existência, o ciclo do próprio Ser que se conecta ao passado através do presente e que a partir dessa conexão, observa e constrói o futuro. Nesse sentido, há um conceito de direito cultural que traz essa conexão:
os direitos culturais são aqueles afetos às artes, à memória coletiva e ao repasse de saberes, que asseguram aos seus titulares o conhecimento e uso do passado, interferência ativa no presente e possibilidade de previsão e decisão de opções referentes ao futuro, visando sempre a dignidade da pessoa humana (CUNHA FILHO, 2000, p. 34)
Como minha área não é o direito, mas a filosofia e as ciências das religiões com foco nas religiões afro-ameríndias e na filosofia africana, trago esses conceitos relacionando-os muito mais à cultura que permeia nossa existência humana que ao direito que permeia nossa cultura, porque o direito é mutável está inserido no que a cultura molda. Nesse sentido, a nossa ancestralidade está diretamente relacionada à cultura africana, nosso DNA ancestral primordial. Segundo Kakozi (2018), nossos ancestrais representam a ligação entre os vivos, os mortos e os ainda não nascidos. É essa relação intergeracional que representa nosso legado, nossa história e nosso conhecimento sobre nós mesmos e sobre o mundo. E toda essa informação ancestral que forja nossa identidade está presente na genética, na memória, na história e nós temos direito a ela, e dentro desse direito de acesso a nossa própria cultura, temos o dever de preservar e transmitir para que não ocorram epistemicídios, que são os processos de invisibilização e ocultação das contribuições culturais e sociais, nem etnocídios, que se referem à destruição sistemática dos modos de vida e pensamento das pessoas (NEGREIROS, 2019), também denominado de genocídio cultural.
Aqui retornamos ao ponto inicial. O direito cultural foi previsto na Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão da Assembleia Geral das Nações Unidas para preservar os direitos humanos, sendo um documento revolucionário, culminante da Revolução Francesa e inspirada nos pensamentos dos iluministas, cujo objetivo foi estabelecer a proteção e a dignidade humana. A relação entre a proteção, a dignidade humana e a memória é indissociável porque a memória é a chave da nossa identidade e essa identidade deve ser preservada hoje e no futuro para que a cultura ancestral nos sirva de balizamento para sempre sabermos quem fomos, quem somos e o que podemos ser.
Apagar a memória, o passado, é apagar o futuro. É preciso revisitar o passado, olhar para trás, mas manter os pés firmes no chão, tal qual o Sankofa, representado pelo pássaro africano com a cabeça olhando para trás, mas com os pés firmes no chão, mostrando que é importante retornar ao passado para ressignificar o presente. Nesse sentido, ancestralidade e direito cultural andam juntos e de mãos dadas, representando nossa própria identidade e nossa dignidade como pessoa humana, tendo em vista que o direito cultural está inserido no direito social e no âmbito dos direitos humanos, garantindo a representação da pluralidade e da diversidade que são próprias da condição humana.
Imagem de destaque: Reprodução/Carta de Belém
REFERÊNCIAS:
FERNANDES, José Ricardo Oriá. A cultura no ordenamento constitucional brasileiro: impactos e perspectivas. In: ARAÚJO, José Cordeiro de; PEREIRA JÚNIOR, José de Sena; PEREIRA, Lúcio Soares; RODRIGUES, Ricardo José Pereira. Ensaios sobre impactos da Constituição Federal de 1988 na sociedade brasileira. Brasília: Centro de Documentação e Informação, 2008, p. 207;
CUNHA FILHO, Francisco Humberto. Os direitos culturais como direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro. Brasília: Brasília Jurídica, 2000, p. 34.
KAKOZI, Jean Bosco. Filosofia africana: a luta pela razão e uma cosmovisão para proteger todas as formas de vida. 2018. Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/05/filosofia-africana-a-luta-pela-razao-e-uma-cosmovisao-para-proteger-todas-as-formas-de-vida/. Acesso em 02 jan. 2019.
NEGREIROS, Regina C. A. T. Ubuntu: considerações acerca de uma filosofia africana em contraposição a tradicional filosofia ocidental. Problemata: Revista Internacional de Filosofia, V. 10. n. 2, p. 111, 2019. Disponível em <https:// periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/problemata/article/view/47738/28613>. Acesso em 10 Dez. 2019.
Declaração de direitos do homem e do cidadão – 1789. Universidade de São Paulo. Biblioteca Virtual de Direitos Humanos. Disponível em: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-de-direitos-do-homem-e-do-cidadao-1789.html. Acesso em 18 de set. de 2021
CERQUEIRA, Jéssica. Írín Afrika: A mensagem subliminar esculpida em antigos portões. Disponível em: https://ceert.org.br/noticias/africa/11650/irin-afrika-a-mensagem-subliminar-esculpida-em-antigos-portoes. Acesso em 22 set 2021.
O texto, muito bem escrito, reflete a importância de instituições e pessoas lutarmos pelo resgate ampliação do conhecimento de nossa ancestralidade e sua influência em nossa vida e para o futuro. Parabéns à autora Regina Negreiros.