Deputado preso, absurdo normalizado e um país cada vez mais difícil de explicar

Daniel Macedo –

A folia cedeu lugar ao luto, substantivo. A ação parece paralisada. Quase 1 ano após a hecatombe da pandemia, as pessoas parecem sufocadas com uma guerra de narrativas em looping. Exaustas de tanta informação, especialmente porque há em nosso tempo uma ideia torta de cidadania digital que induz todo mundo a formar posição a partir das informações que recebe.

Tem que ter opinião, e conforme a opinião será determinada a tribo a qual pertence o individuo que se posiciona – porque supõe que precisa se posicionar a todo tempo, antes ou até mesmo sem qualquer processo reflexivo.

Ter que fazer o que quer que seja é, em si, um peso nesse tempo de normalização da morte, dos amontados de corpos que não comovem mais. Porém, aqui faço o primeiro alerta: não há vácuo de narrativa.

Escrevo essa coluna confuso e aflito, diante de um país cujo as regras do jogo já não servem para explica-lo há muito tempo. Confusão e aflição é que deveria causar o episódio que envolve o comportamento do Deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), a resposta das instituições e o que se pode entender de tudo isso.

Silveira se entende protegido pela imunidade parlamentar e pela liberdade de expressão para utilizar seu repertório miliciano, achincalhar e ameaçar membros de outro poder, e o próprio STF enquanto instituição. É chulo, violento, intragável. Sobretudo: é coerente com o fazer política o qual Silveira representa, o bolsonarismo radical, que não esconde suas aspirações golpistas, como se estivéssemos na antessala do tenentismo.

No carnaval sem folia e com mortos filhos de uma pátria adormecida, o Ministro Alexandre de Moraes expediu mandado de prisão em flagrante, enquadrando a conduta de Silveira em dispositivos da Lei de Segurança Nacional, espantalho da ditadura militar utilizado para caçar e silenciar os subversivos de ocasião.

Alguém já disse: ‘’quando tudo estiver bem convém que se cumpram as leis, quando tudo estiver mal é imprescindível que se cumpram as leis’’. Uma sabedoria que blinda a institucionalidade do ranger de dentes das maiorias momentâneas.

O inquérito contra os atos antidemocráticos instaurado pelo próprio STF, a decretação de prisão de ofício, o questionável flagrante, e, de forma acintosa, a inexistência de crime inafiançável que autorize a prisão de parlamentar, mostram que a institucionalidade no Brasil de 2021 é um delírio no qual se agarram os amigos da retórica, que negam a perdição de nosso tempo. O juiz investiga, acusa e julga. Não é apenas inapropriado, é antes inconstitucional, além das fronteiras do nosso pacto civilizatório. É ritual para caçar e queimar bruxas.

Se de um lado, a Constituição de forma categórica não apresenta ingredientes para as medidas adotadas, servindo ao apetite dos opositores e dos juizes, por outro lado, o fato em si revela a insuficiência e a fragilidade da democracia brasileira.

Uma democracia que sucumbe diante de qualquer ruído, entregue à negação da ciência em meio à uma  pandemia que mata, mata, mata e mata cada vez mais, repetida e insistentemente. Uma democracia que dá de ombros para quase 100 milhões de brasileiros sem resposta diante do impasse político e fiscal em torno da política de garantia de renda emergencial – que até agora avançou pouco, no ritmo inverso ao da miséria que se alastra.

Esta democracia enfraquecida está nua com todas as suas imperfeições e limitações diante de um parlamentar, exímio representante do caos, legitimamente eleito pelas regras do jogo democrático, e que cospe na constituição que jurou cumprir.

Logo, não há como considerar que a decisão do STF observa os limites que a própria Constituição estabelece para que um parlamentar seja preso pela prática de crime inafiançável, e em flagrante. Os garantistas repetem, corretamente, que o processo penal não pode ser usado como instrumento de vingança.

Porém, o dilema que se apresenta no tempo presente, aos homens e mulheres de hoje, não será resolvido com receita de bolo. A democracia que sangra cede espaço ao autoritarismo, a ficção jurídica não admite, mas há disputa de poder acontecendo em diversas trincheiras.

Hoje, caberá à Câmara dos Deputados fazer  juízo político a respeito da prisão de Silveira. Diante da unanimidade do pleno do STF, que confirmou a decisão do Ministro Alexandre de Moraes, vai sair caro para a Câmara, quintal do centrão, contrariar os sinais da Corte Constitucional.

O que há de mais grave é que o fato não é episódico, mas sintoma. Um país doente que não se faz entender. Atos e manifestações reiteradas contra a democracia seguem firmes, equivocadamente protegidos pela liberdade de expressão que não serve a esse fim.

O mais grave é que a mensagem de Silveira encontrou nos algoritmos das redes sociais o caminho da livre circulação de ideias, e plataformas como twitter e facebook ainda não foram acionadas para adotar providencias. Como uma praga, a virulência se alastra, e com base na experiência dos usuários, chega no terreno fértil de que precisa para circular mais.

O que envergonha é saber que dificilmente o conselho de ética irá cassar o mandato de Silveira por quebra de decoro. Fazer esse prognóstico é confirmar o sintoma e negar o delírio.

Nisso consiste minha tristeza: a institucionalidade já é um delírio, estamos presos a antigos dilemas cujas respostas não atendem às urgências do nosso tempo, e esse tempo que nos coube se apresenta como prenúncio de caos, morte e violência política.