Democracia em risco?
O instituto sueco V-Dem, do Departamento de Ciência Política da Universidade de Gothenburg divulga anualmente um relatório sobre democracias no mundo. Ele mede os níveis de regimes políticos, divididos em quatro categorias: democracias plenas, democracias falhas, autocracias eleitorais e ditaduras. E tem constatado, a exemplo de outros relatórios internacionais sobre a democracia no mundo, que os espaços democráticos têm encolhido em todos os continentes e que está havendo o que consideram como um colapso da democracia, uma recessão democrática no mundo, expressa no enfraquecimento sistemático das instituições e dos valores democráticos, inclusive em países de larga tradição democrática, como na Europa (embora estudos sobre as atitudes dos seus cidadãos com relação à democracia indicarem que ainda se mantêm níveis elevados de adesão aos valores e aos princípios democráticos, constata-se que em geral, há uma grande insatisfação com o funcionamento da democracia) e tem como uma de suas consequências o crescimento eleitoral da direita e extrema-direita, cujos objetivos são justamente acabar com a democracia.
Há outros aspectos, como o colapso dos sistemas partidários que, no caso do Brasil e alguns países da América Latina, por exemplo, explicam em parte o surgimento de ‘forasteiros messiânicos’ que aceleram a erosão da democracia sob o pretexto de salvá-la da decadência. Como todos os populistas e autoritários que foram eleitos, desdenham das instituições, vistas como facilitadoras de corrupção que somente eles podem impedir e usam isso apenas como pretexto eleitoral.
No último mês de março mais um relatório foi divulgado, com dados relativos a 2022 e se constata existir hoje no mundo mais ditaduras do que democracias e que 72% da população mundial vive em países não democráticos. Segundo o relatório, os níveis globais de democracia caíram para um nível mais baixo desde 1986 e o número de países considerados ditatoriais se tornou maior do que o de democracias plenas pela primeira vez desde 1995. Na pesquisa, são avaliados como critérios, entre outros, a liberdade de expressão (e de imprensa em particular) independência entre os poderes, repressão policial e confiabilidade do sistema eleitoral.
De acordo com o relatório, o número de democracias plenas (como Alemanha, França, e aos países nórdicos – que fazem parte da Europa setentrional e do Atlântico Norte – Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia), teve seu ápice em 2009 e depois houve um decréscimo, com o crescimento da direita e da extrema-direita, inclusive em eleições. Foi o que ocorreu na Finlândia no dia 2 de abril de 2023 quando a direita (Coligação Nacional) venceu as eleições gerais e substituirá os social-democratas (que ficou com apenas 43 das 200 cadeiras), e os ultranacionalistas tiveram uma votação expressiva, conseguindo um resultado recorde desde a sua formação.
Nos anos 1970 as consideradas como democracias falhas eram 16 (na América do Sul, em particular, a maioria dos países, inclusive o Brasil, viviam sob ditaduras) e em 2022 aumentou para 58 e associado às consideradas como autocracias eleitorais (países que realizavam eleições periódicas, mas com controle total desse processo) que eram 35, passou para 56 em 2022, somando assim 114 países. Como exemplos de autocracias eleitorais são citados a Hungria, Índia, Polônia e Turquia, e democracias falhas, entre outros, África do Sul e Brasil. A constatação, portanto é que houve um retrocesso democrático na maioria dos países do mundo.
No caso do Brasil, o que se chamou de recessão democrática é o que se dá a partir do golpe contra a presidente Dilma Rousseff em 2016. Três anos depois, em 2019, o país ocupava a 52ª posição no ranking da revista The Economist que avaliou o desempenho democrático de 167 países. O país foi classificado como uma “democracia imperfeita” (e nos termos do relatório citado, uma “democracia falha”) e em 2020, no segundo ano do governo Bolsonaro, foi o país que registrou o maior retrocesso, que mais perdeu atributos democráticos, e continuou nos dois anos seguintes, 2021 e 2022, sendo este o quarto ano seguido de queda de qualidade da democracia, com um presidente que não apenas convocou como participou de atos antidemocráticos, com constantes ameaças às instituições como o STF e TSE, frequentes hostilidades contra jornalistas, questionamentos quanto à lisura das eleições (foi feita até uma reunião com embaixadores de vários países para desqualificar o sistema eleitoral no qual ele mesmo havia sido eleito em 2018), incitar militares contra os poderes civis, entre muitos exemplos.
E não se tratava apenas do Brasil. O país se juntava a mais 41 que estavam em declínio democrático (aumentou de 33 em 2021 para 42 em 2022). Segundo o relatório O estado global da democracia 2021, Construindo resiliência na era da pandemia, do Instituto Internacional para a Democracia e Assistência Eleitoral (IDEA) mais de um quarto da população mundial vivia em democracias em retrocesso e se somados os regimes autoritários e híbridos seriam em torno de 70% dos países.
E esses retrocessos democráticos antecedem. Larry Diamond no livro O espírito da democracia: a luta pela construção de sociedades livres em todo o mundo (Editora Atuação, Curitiba, 2015) mostra que esse processo vem se aprofundando e que desde 2000 até 2014, foram contabilizados 25 colapsos democráticos no mundo “não apenas através de flagrantes golpes militares, mas também por meio de degradações graduais de direitos democráticos e procedimentos que por fim empurraram a democracia acima do limiar do autoritarismo”.
Constatado os retrocessos democráticos nos anos de governo de Bolsonaro, que testou abertamente as instituições democráticas, existem hoje riscos de continuidade desse processo, mesmo com o governo democrático de Lula? Os derrotados na eleição de 2022, depois de quatro anos de retrocessos, estupidez e obscurantismo, com a atuação de uma extrema-direita golpista, não representa mais perigo à democracia? A tentativa golpista (frustrada) no dia 8 de janeiro de 2023 mostra que sim, mas não se sabe até que ponto existem articulações dentro e fora dos quartéis para um golpe de Estado.
Há clima no país e externamente para isso? Luis Nassif, na TV GGN exibida no dia 21 de abril de 2023 (os interesses externos na marcha da conspiração), considera que determinados fatos que tem ocorrido no Brasil recentemente, como os ataques às escolas (e a prisão de mais de 200 pessoas por estimular atos de violência em vários estados) e o que chamou de “a jogada que a CNN fez com GSI”, espalhando um vídeo editado pode fazer parte de uma conspiração mais geral e que há o que ele chama de “uma cabeça pensante” por trás de tudo isso (em relação ao vídeo, segundo o site pragmatismo político o jornalista da CNN que o vazou é amigo de Jair Bolsonaro e passou os últimos meses nos EUA ao lado do ex-presidente e que as imagens divulgadas por ele estavam “fora de ordem cronológica e com rostos estrategicamente borrados” e “provocou queda do ministro de Lula e fortaleceu narrativa bolsonarista”.
No programa de Nassif, foi entrevistado Francisco Carlos Teixeira da Silva, professor de História Moderna e Contemporânea da UFRJ e professor Emérito da Escola de Comando do Estado Maior do Exército que concordou com ele em relação à gestação de um golpe de Estado, afirmando seria um golpe de outro tipo, não mais com blindados e tanques nas ruas, ocupação de prédios públicos etc., e sim um golpe “por dentro” e cita como um dos exemplos, o que ocorreu na Bolívia, que levou a renúncia de Evo Morales no dia 10 de novembro de 2019 após as Forças Armadas “sugerirem” que ele deixasse o cargo.
Evo Morales havia comunicado pela manhã que convocaria novas eleições, após quase três semanas de protestos nas principais cidades do país por suspeita de fraude nos resultados da votação de 20 de outubro de 2019, que haviam dado a ele um quarto mandato (era presidente desde 2006). Para o comandante das Forças Armadas da Bolívia, que divulgou um comunicado em nome do alto comando, a saída de Morales seria importante para resolver o “impasse na crise política do país” desde o resultado da eleição presidencial, criado pela oposição com apoio das Forças Armadas. Ele também se refere às tentativas (frustradas) de golpe como as que ocorreram nos Estados Unidos (invasão do Capitólio no dia 6 de janeiro de 2020) e a invasão (e depredação) da sede dos três poderes em Brasília no dia 8 de janeiro de 2023.
No caso específico do Brasil, como parte de uma estratégica golpista, pode ser citado à minuta de um decreto para instaurar o Estado de Defesa que a Polícia Federal encontrou na casa do ex-ministro da Justiça do governo Bolsonaro, Anderson Torres. Segundo a Constituição Federal o presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional “decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza”, o que não era o caso. Era simplesmente um golpe, com a formação de uma comissão constituída majoritariamente por militares e que implicaria na permanência de Jair Bolsonaro como presidente.
Essencialmente, seria uma tomada de poder por dentro, por forças reacionárias, fascistas e para isso é necessário, para justificar o golpe, criar um clima propício, de “caos” (e até mesmo uma pretensa ameaça comunista para enganar incautos), um estado permanente de tensão, de pânico e violência, como os atos de Brasília no dia 8 de janeiro como ocorreram em 1964, usado como pretexto para justificar uma intervenção militar.
Para Francisco Carlos Teixeira, com ameaças pairando no ar e em um cenário internacional no qual os valores democráticos estão em baixa no mundo, o fundamental hoje é o combate sem trégua ao fascismo, sem diálogo possível com os querem destruir a democracia e instaurar uma ditadura. No país formou-se o que ele chama de Bolsofascismo – um fascismo do século XXI – que é uma forma de agir político que hegemonizou as direitas dispersas no país e que o grande desafio é como construir um “dique” contra o avanço do fascismo, dentro e principalmente fora do Congresso Nacional.
Foto: FolhaPress