Consciência de classe: empatia e discurso Cristão após carreata pró vida e garantias constitucionais

Fazer um recorte para uma análise de um país continental como o Brasil é uma tarefa complexa e extremamente difícil, mas necessária. Mesmo que esta análise não seja densa, dada a sua complexidade, é pelo menos um árduo exercício para entender uma das perspectivas que faz nosso cenário político e social ser tão aterrorizante.

No domingo passado (21) foi realizada a terceira carreata em João Pessoa promovida por movimentos sociais, alguns partidos políticos e gente de toda sociedade. Foi um movimento pró-impeachment que nasceu do caótico cenário de crise sanitária no Brasil e no mundo e agregou forças progressistas de diversos segmentos em busca de um país digno, plural e com justiça social.

A pauta do movimento, no entanto, é diversa assim como o próprio coletivo, incluindo a vacinação urgente para toda a população, o respeito à diversidade humana, a universalização do SUS, a não privatização das nossas instituições e tudo que representa retrocesso no atual governo. A análise que faço, portanto, se dá nessa perspectiva da carreata; esse será o recorte.

Um primeiro ponto é a questão da consciência de classe. Nesse aspecto, inicio a análise a partir do que seria seu conceito trazido por um cartaz que circulou nos anos 1970 na América do Norte e Europa, o cartaz dizia: “Class consciousness is knowing wich side of the fence you’re on. Class analysis is figuring out who is there whith you”. A tradução do texto é:

“A consciência de classe é saber de que lado da cerca você está.  A análise de classe é descobrir quem está lá com você”. Essa é uma ponderação que o Brasil colonial não aprendeu a fazer, e claro, jamais houve interesse das classes dominantes em que nós, meros mortais, a façamos, porque a revolução se faz com consciência de classe e a dominação se faz pela ausência dela. Além disso, “estrutura, consciência, formação, solidariedade e luta de classe são objetos da análise de classe” (PESCHANSKI, 2017, p. 24).

Outro ponto é o discurso cristão incorporado por grupos com absoluta distorção de sua essência, como é o caso dos grupos de extrema direita, simpatizantes do bolsonarismo, que propagam uma sectária homilia de segregação e desrespeito ao que é essencialmente humano e solidário através de “fake News” e distorções gritantes. Bem, o cristianismo, pra melhor situar o que falo, surgiu na Palestina, região sob o domínio romano desde 64 a.C, sem jamais se curvar ao seu domínio, sofrendo sanções e perseguições por parte dos romanos. O nome palestina foi dado pelo Império Romano a região do Oriente Médio situada entre a costa oriental do Mediterrâneo e as atuais fronteiras ocidentais do Iraque e Arábia Saudita, hoje compondo os territórios da Jordânia e Israel, além do sul do Líbano e os territórios da Faixa de Gaza e Cisjordânia.

Mas e o que isso tem a ver? O cristianismo, em sua origem, foi difundido entre os excluídos da sociedade romana – mulheres, pobres e, especialmente, escravos. Portanto tinha um caráter social incontestável, servindo de consolo aos miseráveis produzidos pelo próprio império, através de sua mensagem de igualdade e pacifismo. Dado o constante crescimento do cristianismo e seu alto número de adeptos, mesmo em meio às perseguições políticas, tornou-se difícil combatê-lo, sendo mais fácil controlá-lo, por isso, Teodósio – o grande, por meio do edito de Tessalônica, em 390, tornou o Cristianismo a religião oficial do Império.

Aqui voltamos ao enredo inicial. A carreata realizada com sua pauta plural e inclusiva, pedindo dignidade e qualidade de vida para todas as pessoas, inclusive pelos que dela não participam ou mesmo dos que com ela não se comovem, me fez pensar  na mediocridade humana e na falta de empatia das pessoas que não se solidarizam com as mortes pela COVID19, com a fome, com o desemprego etc.

O que me levou a essa reflexão foi a cena hostil de homens cuja mediocridade humana se reflete em gestos obscenos e naquele famoso gesto  imitando uma arma na mão que se popularizou na campanha presidencial do mais medíocre de todos os seres partícipes do atual cenário político brasileiro. A carreata foi um sucesso, sem dúvida. Conseguiu-se  uma forma de mostrar a indignação em todo esse caos de uma nação que não se indigna com a catástrofe anunciada. Mas mesmo com o êxito da carreata, aquela cena dantesca não me sai da cabeça.

A cena registrada em minha memória se deu na passagem  da carreata pela feira de oitizeiro, um dos principais mercados públicos da capital paraibana. Apesar de ver-se muitas pessoas solidárias sorrindo e acenando para os carros, um grupo de homens de meia idade, de roupas simples e calçando chinelas de dedo (alguns estavam descalças), talvez uns seis a oito indivíduos, inclusive um com machado na mão  empunhando-o ao alto e gritando efusivamente o que pareciam ser xingamentos, entre tabuleiros, feirantes e clientes daquele espaço. Eles não se intimidavam, suas faces rubras de raiva e descontentamento com a vida estavam estampadas ali naquela cena, ao gesticular e gritar para quem não lhes poderia ouvir. Sem dúvidas, soldados fiéis do presidente. Pessoas  que não conseguem enxergar em que lado do muro estão e nem quem são as pessoas que estão ao seu lado. Estão cegos, surdos e lobotomizados pela ladainha bolsonarista que os exclui de sua própria existência ao negar-lhes a dignidade, os direitos e garantias constitucionais.

Assim como estes, são muitos os que ainda permanecem na caverna[1] e insistem em não querer sair. Eles julgam os que saem sem perceber que as cenas projetadas nas paredes de suas existências são na verdade manipulações para que ali permaneçam, silentes e em eterna obediência.

Este recorte, claro que não nos diz do todo, mas denota o quanto as raízes do colonialismo ainda estão entranhadas em nosso país, em nosso sistema e em nossa cultura. Denota ainda o quanto será difícil tirar da caverna pessoas que há mais de cinco séculos escutam a história deturpada de um país receptivo e uma pátria mãe gentil. Essas pessoas não questionam, por exemplo, gentil pra quem? Elas jamais desconfiaram sequer que esse engodo é uma forma de manipulação para manutenção do status quo dentro da estrutura patriarcal e de uma pseudo democracia racial, pseudo democracia de gênero e pseudo democracia de representatividade.

Esse cenário cujo recorte é uma cena que aos meus olhos parece dantesca de cujas pessoas, em sua maioria se diz cristã, evidencia a completa ignorância de classe e o completo distanciamento do que é cristão em sua real essência, pois não é empático, não é solidário e não traz nenhum traço de alteridade. É um recorte de um país que naturalizou as mortes, a fome e a miséria, que não se ressente porque talvez seja ele a própria caverna.

 

Referências:

Imperador Teodósio e a Igreja: A relação entre o imperador Teodósio e a Igreja, no fim do século IV, foi, apesar de tensa, decisiva para a formação da Europa Ocidental. Disponível em: https://mundoeducacao.uol.com.br/historiageral/imperador-teodosio-igreja.htm    . Acesso em 22 fev 2021.

PESCHANSKI, João Alexandre. Variações sobre a luta de classes. Dossiê Cult, n° 223. CULT – Revista brasileira de cultura. Maio, 2017

[1] Referência ao texto Alegoria da Caverna, também conhecido como Mito da Caverna, constante na obra A República, de Platão – um dos mais importantes filósofos da filosofia grega.