Consciência de classe: análise da nova “guerra santa” no Brasil a partir da carreata de 24 de julho

Engana-se quem não acredita que exista uma guerra santa ou que acredita que isso seja coisa do passado. De fato ela existiu no passado em algumas civilizações; as primeiras ocorreram no Islamismo por volta do século VI e no Cristianimo da Idade Média a partira das expedições militares organizadas pela Igreja Católica, cujo objetivo erareconquistar o Santo Sepulcro em domínio muçulmano e se projetar sobre o território bizantino. Esse é um recurso utilizado pelas religiões monoteístas para se blindar daquilo que considera uma ameaça.

A atual conjuntura política do país mostra que há em curso uma nova cruzada, diferente na metodologia, mas com o mesmo objetivo das anteriores cruzadas históricas. Isto é, o artifício da guerra se dá noutros moldes e um dos métodos é a sedução através do argumento da prosperidade, a teologia da prosperidade que nasce nos estados unidos no século XIX e se expande no Brasil na década de 1970 através da IURD – Igreja Universal do Reino de Deus, que usa politicamente os recursos de suas conquistas para se manter no poder e captar mais e mais pessoas através de um discurso sectário que propaga um deus que difere essencialmente daquele pregado por Jesus Cristo e lembra muito mais o deus vingativo e cheio de promessas presente no velho testamento.

A partir dessas considerações iniciais, faço um breve recorte para uma análise, não tão densa quanto gostaria dada a sua complexidade, mas uma análise como um árduo exercício para entender uma das perspectivas que faz nosso cenário político e social ser tão discrepante e muitas vezes desolador, mas, apesar de tudo, reafirmo que mantenho firme a esperança de um dia um habitarmos um mundo justo e  igualitário, sem guerras em nome de Deus, sejam elas santas ou profanas. É a esperança que me faz continuar a lutar!

No fim de semana de 2 de julho foi realizada a carreata chamada de 24J (alusão à data) em João Pessoa promovida pelos movimentos sociais, alguns partidos políticos e pessoas de toda sociedade sem estes vínculos, além do grupo autodenominado que Movimento Fora Bolsonaro, surgido devido ao caótico cenário de crise sanitária no Brasil e no mundo, agregando forças progressistas de diversos segmentos políticos e sociais.

A carreata se concentrou no bairro popular de Mangabeira e se dirigiu até a Praça da Paz, no bairro dos Bancários. Já na concentração manifestantes, de máscaras e com pequenos frascos com álcool nas mãos, mantinham o respeito às regras sanitárias vigentes por conta da pandemia da COVID19. Na concentração minha atenção se voltou, no entanto, para uma senhora que estacionou seu veículo em uma calçada, na frente de uma garagem, e estendeu um banner, uma lona com a foto estampada da família Bolsonaro, implicando com os manifestantes que ali estavam pacificamente. Mas não parou por aí, durante a carreata, algumas pessoas nas calçadas gritavam com os manifestantes chamando-os de vagabundos e outros termos pejorativos similares. Uma fala de uma senhora me chamou muito atenção e ficou martelando minha cabeça. A senhora tinha aparentemente meia idade, estava ao lado de um senhor aparentemente com a mesma idade. Ambos estavam vendendo frutas e verduras em um carro estacionado em uma praça no bairro de mangabeira e vestiam trajes que lembravam evangélicos tradicionais. Enquanto a carreata parou por alguns instantes em respeito ao tráfego local, ouvi claramente: “esse povo é tudo sapatão endemoniado que nunca foià igreja” (sic). A frase vindo de uma pessoa “cristã” já é assustador, mas é pior quando a frase se refere a pessoas que estão em uma carreata pela dignidade, pela vida.

Aqui se vê dois claros problemas: primeiro se refere a ausência de uma consciência de classe. Em colunas anteriores eu trouxeoconceito a partir de  um cartaz que circulou nos anos 1970 na América do Norte e Europa que dizia: “Classconsciousnessisknowingwichsideofthefenceyou’reon. Classanalysisisfiguring out whoistherewhithyou” (A consciência de classe é saber de que lado da cerca você está.  A análise de classe é descobrir quem está lá com você). Esse é um conceito que o Brasil colonial não conseguiu entender, e claro, jamais houve interesse por parte das elites dominantes de que o entendamos, pois a revolução se faz com consciência de classe e a dominação se faz pela ausência dela.O segundo problemaé a distorção do discurso cristão em benefício daqueles que o distorcem como é o caso dos grupos de extrema direita que propagam uma homilia de segregação e desrespeito ao que é essencialmente humano, solidário e que se faz presente no discurso embrionário de Cristo.

Nunca é demais lembrar que o cristianismo, em sua origem, foi difundido entre os excluídos da sociedade romana – mulheres, pobres e, especialmente, escravos. Seu caráter social é incontestável, tendo em vista que serviu de consolo aos miseráveis produzidos pelo próprio império, através de sua mensagem de igualdade e pacifismo. Na atual conjuntura política, enquanto alguns usam o discurso de ódio e distorcem o sentido do Ser Cristão, outros se apegam ao Cristo e, assim como no passado mencionado acima, esse mesmo cristianismo que é distorcidos por uns, serve de força motriz para seguir lutando por igualdade e paz.

Apesar das cenas mencionadas, a carreata foi um sucesso, sem dúvida. Foram mais de 500 veículos que, ao final, se juntaram aos manifestantes que seguiram puxando a carreata a pé durante todo percurso até a Praça da Paz. E se alguns criticavam e agrediam verbalmente a manifestação pela vida, outras pessoas se alegravam e faziam gestos de solidariedade. A dicotomia vista deveria ser própria da democracia, da dialética social, no entanto quando se age de forma desrespeitosa e agressiva, quando se levanta bandeiras fascistas, racistas, homofóbicas, já não há democracia, já não há dialética social. Há desrespeito! E quando esse desrespeito se imbui de argumentos religiosos de um pseudocristianimo, além de desrespeito, é ignorância. Essa ignorância ajuda a construir muros e separar pessoas, reforçando a ignorância daqueles que não conseguem enxergar em que lado do muro estão e nem quem são as pessoas que estão ao seu lado.

Este recorte, claro que não nos diz do todo, mas denota o quanto as raízes do colonialismo ainda estão entranhadas em nosso país, em nosso sistema e em nossa cultura. Evidencia ainda o quanto as pessoas se deixam manipular e se colocam como soldados dessa guerra santa contemporânea na qual as armas utilizadas matam de forma silenciosa, e formam verdadeiras milícias religiosas que tentam se impor em uma distopia da fé, na qual as pessoas por medo ou desespero, pela fome ou pela miséria, se apegam a um deus que lhes promete, na voz do líder religioso, alcançar a prosperidade e a felicidade em troca da devoção cega e da reprodução do seu discurso que arrebanhará ainda mais e mais fiéis.

A religião se propaga no vácuo onde habitam o desespero e a dor. A guerra santa moderna coopta seus soldados no vale do desalento e da desesperança. Engana-se quem acha que guerra santa é coisa do passado! Ela não só existe como tem se fortalecido através da política que tem reforçado, e das fakenews, a cooptação de soldados para travar a batalha entre a vida e a morte da democracia no país.