As religiões e seu poder de influenciar a coletividade

Por Regina Negreiros

A partir das visões do mito, conforme abordado nas colunas anteriores, pudemos entender melhor as construções sociorreligiosas e como elas se reestruturam através do tempo se tornando sócio-político-religiosa. Talvez o que não tenha ficado claro, mas agora esclareço, é como essa estruturação interfere nos fenômenos religiosos nas sociedades. Lembrando que essa é uma abordagem científica, que parte da perspectiva das Ciências das Religiões, uma ciência interdisciplinar e plurimetodológica que analisa o fenômeno religioso sem qualquer cunho confessional.

Como já abordamos a formação dos mitos, precisamos dar um passo adiante para interligar as questões concernentes ao MITO e a RELIGIÃO. É importante antes, perceber que toda sociedade, primitiva ou moderna, desenvolveu um sistema religioso, tendo em vista que a religião é um fenômeno humano que permeia, portanto, nossa existência social e coletiva.

Outro fator importante, antes de prosseguirmos, é entendermos que a religião não pode ser reduzida, em sua definição, em campos da experiência e de sentido ou a campos de identidade e poder, embora estes sejam intrinsecamente ligados e emaranhados entre si. Além disso, enquanto fenômeno, é de importância crucial a reflexão sobre o assunto em nossa conjuntura atual,  tendo em vista os impactos sociais e políticos que pode causar, como foi possível observar na última eleição presidencial no Brasil, em 2018, quando os evangélicos (em todas as suas múltiplas denominações), conforme estimativa publicada na pesquisa Datafolha de 25 de outubro de 2018, votaram massivamente com Bolsonaro[1].

A influência direta de pastores nas igrejas menores e dos pastores atuantes na mídia, como Silas Malafaia e Edir Macedo, por exemplo, que, segundo Ferreira (2020), atuaram como líderes de opinião, foram decisivas para a mudança política no país e essas mudanças impactam diretamente a sociedade em suas perspectivas sociais, culturais e religiosas. No exemplo acima, é possível relacionar a influência religiosa com a influência dos mitos que, conforme Campbell (2018), têm sua origem a partir das experiências individuais, e que ao serem absorvidas pela sociedade, se convertem em determinantes coletivos. Portanto, a força das convicções baseadas na própria experiência, a fé individual em oposição à coletiva que forma um símbolo mítico, serve como guia e suporte social para atuar na esfera da coletividade de uma igreja. De tal forma, é possível perceber que há uma grande influência das igrejas na esfera política e social, como ocorreu em 2018 e em outros períodos históricos onde os mitos, assim como as religiões estabelecidas socialmente, influenciaram coletivamente. E como disse no primeiro texto da nossa coluna, o grande problema é quando a religião interfere politicamente na sociedade e tenta sustentar seus dogmas para direcionar o caminho pelo qual as pessoas devem seguir.

Para perceber essa realidade de conjuntura é necessário o olhar atento sobre a confluência da pluralidade de experiências e significados no âmbito das religiões e sobre a multiplicidade de realidades sociais e culturais em que ela se constrói inspirada em seus próprios significados, de tal forma, é importante entender o que vem a ser religião, por isso, trago alguns autores para clarear o entendimento.

Para Durkheim (1996), a religião possui uma dimensão social e sistemática, e o homem é formado pela soma do ser individual e do ser social, de forma que, “na medida em que participa da sociedade, o indivíduo naturalmente ultrapassa a si mesmo” (DURKHEIM, 1996, p. XXIV). Para o autor,  a natureza da religião resulta dos fenômenos elementares dicotômicos, “dois gêneros opostos –, que são amplamente designadas por dois termos distintos, que as palavras profano e sagrado traduzem muito bem. A divisão do mundo em dois domínios […] esse é o traço distintivo do pensamento religioso” (DURKHEIM, 1996, p. 50/51). Segundo ele, a religião é uma projeção dos valores sociais, algo real, já que seus efeitos são reais, mesmo que suas origens sociais estejam camufladas e que as explicações e crenças sejam ilusórias. Ele define religião como “um sistema solidário de crenças e de práticas relativas às coisas sagradas, isto é, separadas, proibidas, crenças e práticas que reúnem numa mesma comunidade moral, chamada igreja, todos aqueles que a elas aderem” (DURKHEIM, 1996, p. 32), sendo, portanto, um elemento de coesão social, instituída pelos indivíduos que partilham das mesmas crenças e norteados pela mesma moral comunitária.

Para Silas Guerriero (2013) não há uma religião mais verdadeira que outra. O olhar antropológico permite penetrar nas redes de significados das diferentes culturas e perceber os sentidos intrínsecos que cada sistema religioso possui. De tal forma,  todas as religiões desempenham papéis importantes no mecanismo social.  Para o autor, não há consenso na definição do termo religião, embora haja consenso sobre a existência dos elementos dentro dos sistemas religiosos que são os símbolos, os ritos e os mitos. Os símbolos têm significado fixo, inerente a eles mesmos, em todas as religiões e culturas. Os ritos tem o poder de instaurar uma condição social, reforçando os vínculos entre os indivíduos, e através deles, podem ser observados aspectos fundamentais de como uma sociedade vive, pensa a si mesma e se transforma. Os mitos penetram no universo cosmológico e nas visões de mundo de povos diferentes, constituindo  narrativas coletivas, contadas a partir de um discurso metafórico, que tratam das questões mais intimas de uma sociedade como forma de linguagem ampla e presente em todas as sociedades. Tanto os símbolos como os ritos alimentam os mitos.

Guerriero (2013) afirma que  as sociedades mantêm e reinventam antigas religiões ao mesmo tempo em que surgem novas religiões e essa riqueza e imensa variedade trazem consigo novos desafios na compreensão desse fascinante universo que tanto influencia como é influenciada pela cultura, criando e recriando novos ethos e paradigmas sociais, numa grande confluência de diferentes vias.

Para Lévi-Strauss (1970), a religião é interessante  na medida em que espelham as estruturas inconscientes da mente humana, reproduzindo-os da mesma forma, tanto entre os “selvagens” quanto entre os “civilizados”, constituindo um importante sistema de sustentação e organização social.

Já Luiz Assunção (2010), estudioso do universo Catimbó-Jurema no Nordeste, a religião é “uma construção cultural simbólica, dotada de significados e com caráter legitimador da ordem social e manutenção do mundo” (ASSUNÇÃO, 2010, p. 26).

Todas as colocações acima expostas mostram que o conceito de religião é algo muito complexo e que todas as religiões desempenham papéis importantes no mecanismo social, sendo parte da arquitetura de diferentes culturas que se fundiram, se ressignificaram ou mesmo se reinventaram, assim como acontece com os mitos, conforme Campbell (2018). Além disso, estando presente em toda e qualquer sociedade existente, a religião as tem moldado e estruturado  conforme seus interesses sócio-políticos, influenciando indivíduos e coletivos em suas ações que, de forma circular, operam em fluxo constante de afetamento recíproco, gerando a arquitetura que estrutura a construção do tecido sócio-político-religioso.

Referências:

ASSUNÇÃO, Luiz C. O Reino dos Encantados – caminhos: tradição e religiosidade no Sertão Nordestino. Tese de doutorado. São Paulo: PUC-SP. 1999

CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: Mitologia Criativa, Vol. 4. 2 ª ed. São Paulo: Palas Athena, 2018.

DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico na Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1992. Introdução, Cap. I – p. 5-32.

FERREIRA, Matheus. (2020). Eleições presidenciais 2018 no Brasil: uma análise do voto evangélico. Disponível em https://www.researchgate.net/publication/339864656_Eleicoes_presidenciais_2018_no_Brasil_uma_analise_do_voto_evangelico. Acesso em 19 dez 2021.

GUERRIERO, Silas. Antropologia da Religião In: PASSOS, João Décio. USARSKI, Frank. Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas/Paulus, 2013. p.243-256.

[1] ALVES, JED, CAVENAGHI, S, BARROS, LFW, CARVALHO, A.A. Distribuição espacial da transição religiosa no Brasil, Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 29, n. 2, 2017, pp: 215-242