Alienação parental ou autoalienação parental?
Muito já se ouviu falar sobre alienação parental e nem é preciso pertencer ao ramo jurídico para ter uma noção do que se trata. De uma forma sintética, a alienação parental está configurada quando o(a) genitor(a) alienador(a) busca implantar falsas memórias nos filhos, apresentando comportamento agressivo ao menor sinal de aproximação com o ex-cônjuge/companheiro(a), tentando impedir que bons sentimentos venham surgir na relação entre a criança e a outra parte. A situação também pode ter como protagonista uma avó, um avô, tio, tia ou algum parente próximo que conviva com o menor.
Porém, um cenário diferente começou a ser analisado nas Varas de Família e os inúmeros processos de guarda e de divórcio ali enfrentados: a autoalienação parental ou alienação autoinfligida. A situação ocorre quando o próprio genitor é o responsável pelo afastamento da criança. Deixe-me dar um exemplo prático de uma experiência que presenciei: manhã de sábado ensolarada. Um pai e um garotinho na quadra de esportes do condomínio. Eles brincavam de futsal. O pai vibrava e motivava o garotinho a cada chute. Primeiro ato: encantada com a cena. Pai presente e dedicado. Que bacana!
Segundo ato: uma garotinha, um pouco maior que o menino passava a largo. Patins nas mãos. Carinha triste. Olhar cabisbaixo. O “pai presente”: “– Maria Luiza, por que já está com essa cara de problema? Pare de complicar minha vida! Todas as vezes que vem para cá arranja confusão! Vou ligar para sua mãe vir te buscar!”
Eu: vontade de abraçar a garotinha desprezada por um pai que não parecia ter muito interesse em dar-lhe atenção. Maria Luiza era um “problema” para ele! Incluir Maria na brincadeira não dava, né?
O que aquele pai parecia esquecer era o fato de que Maria Luiza existia antes daquele garotinho. Antes da madrasta dela na vida daquele homem. Maria Luiza era a lembrança indelével daquela relação que se findou. Isso atrapalha. Atrapalha a foto da família perfeita nas redes sociais. Atrapalha a “felicidade” e “harmonia” do novo casal.
Nas Varas de família, maus tratos às crianças frutos de relações pretéritas é mais comum do que se pensa. Por razões óbvias, Maria Luiza provavelmente não desejaria mais frequentar a casa de seu pai aos finais de semana. Naturalmente se afastaria e, com o tempo, aquele pai iria acusar a ex-mulher de praticar alienação parental quando ele e somente ele era o responsável pelo afastamento da criança.
Pronto! Está caracterizada a autoalienação parental ou alienação autoinfligida. Há comportamentos recorrentes no cenário de autoalienação. A exigência de que crianças convivam em harmonia com a atual companheira é um deles. Exigência de que apareçam laços afetivos sem que tenham sido gerados por momentos, pelo tempo, ou mesmo pela convivência. Por vezes, aquela madrasta foi o pivô da separação dos pais daquela criança e a exigência dessa adaptação de forma imediata pode gerar dor, mágoa e sentimentos que repelem a convivência. Isso desemboca no inevitável afastamento do menor incapaz de se defender de outra forma. Afasta-se por medo, não por desamor.
Outra situação recorrente é quando o pai (falamos pai porque, via de regra, a moradia do menor é fixada na casa da genitora, ainda que a guarda seja compartilhada) cria situações constrangedoras para que os filhos advindos da outra relação se sintam excluídos, diminuídos, resultando na vontade de não mais visitá-lo.
Sob a ótica de Rolf Madaleno, autoridade jurídica no assunto, a autoalienação também apresenta-se como um desejo de manter a relação por meio do conflito. Outra perspectiva da história da separação, nesse caso, desejada pela genitora e não aceita pelo genitor.
É que ao ser destituído da convivência diária com os filhos o pai passa a apresentar um comportamento disfuncional por não ter conseguido superar a ruptura daquela relação. Ou seja, ele quer manter aquela relação ainda que seja por meio do conflito, por desejo de vingança ou por querer penalizar a mulher pela separação, como se fôssemos donos de alguém…
A falta de previsão legal e a insegurança jurídica decorrente do desconhecimento da prática de autoalienação parental fazem com que muitos casos sejam conduzidos de maneira equivocada, atribuindo-se a um dos genitores a prática de alienação parental, quando, na verdade, se tem a situação inversa, que pode culminar em atos de autoalienação parental. Sem dúvida, apesar de a alienação parental não ter sido reconhecida como verdadeira síndrome, não se pode negar sua existência na vida prática e a importância de sua compreensão para a garantia do direito à convivência familiar das crianças.
Infelizmente, não há decisões judiciais em larga escala que confirmam a existência e relevância da prática de autoalienação parental, limitando-se apenas a analisar, diante do caso concreto, a inexistência de alienação parental, sem atenção para a prática invertida. O fato de se trazer, ainda que para afastá-la, a possibilidade de autoalienação parental por uma das partes, indica o início de um reconhecimento do instituto pelos agentes atuantes no Poder Judiciário. No entanto, o desconhecimento desse outro lado ainda é notório e capaz de gerar muitas injustiças na análise dos casos que chegam em Juízo e que devem ser lidos à luz do melhor interesse da criança e do adolescente.
No entanto, ainda que haja a devida regulamentação do instituto e o clareamento da visão do Poder Judiciário, como lidar com a paternidade e a maternidade quando o fim das relações é permeado de ressentimentos e mágoas? De promessas não realizadas? Restou aos adultos responsabilizar um ao outro e, cruelmente usar a criança como catalisadoras de tantas dores.