A leitura política de Pedro Cardoso

David Soares de Souza –

Na madrugada deste sábado, 3 de abril, o ator Pedro Cardoso fez uma interessante postagem em seu perfil no Instagram. Em sua opinião, um segundo turno ideal nas próximas eleições presidenciais seria entre Lula e Ciro Gomes. O link e o inteiro teor da postagem seguem ao final. Pedro Cardoso reside em Portugal há algum tempo por projetos pessoais, mas não desistiu do Brasil. Na ocasião do lançamento do seu livro, com o título “O livro dos Títulos”, em novembro de 2017, o ator concedeu entrevista a repórter Júlia Moura, do UOL, na qual afirmou que “a solução para o Brasil não é deixá-lo”.

Além disso, o ex-global vem cumprindo um importante papel junto ao público, abordando a necessidade de democratização dos meios de comunicação e a qualidade da produção de seus conteúdos, entre outros temas. Por isso, a leitura crítica de seu texto, além de ser um necessário debate no interior do campo democrático, é também uma forma de respeito por quem opta por não ficar no conforto de sua fama e decide tomar posição no enfrentamento político da direita e da extrema-direita em nosso país.

Sem deixar de considerar que foi apenas uma postagem em mídia social, sem espaço para aprofundamento, porém considerando os impactos de sua replicação, vamos às palavras de Pedro Cardoso. Ele começa dizendo: “O melhor segundo turno seria entre Ciro e Lula, na minha opinião. Quem me faz companhia por aqui sabe do meu desejo de que algo novo surgisse no Brasil; algo sob o que a política tradicional se desvanecesse e petismo e bolsonarianismos e pesdbismos e centrismos dessem lugar a outros movimentos de melhor qualidade”.

Algo novo como e para quem? Que melhor qualidade seria esta? Seria importante saber qual sujeito coletivo construiria esta novidade esperada por Pedro Cardoso. Este critério é determinante porque o bolsonarismo, esta novidade brasileira, usou e ainda usa este mesmo argumento de crítica à “política tradicional”, tratando como iguais forças políticas bem diferentes, para se colocar como alternativa “contra tudo isso que está aí”. É a oposição ao establishment um dos pilares da narrativa da extrema-direita no Brasil e no mundo inteiro.

Ou seja, tivemos sim o surgimento de algo novo contra a chamada “política tradicional”. E com uma política despolitizada e criminalizada, ou talvez por conta disso, o algo novo resultou na extrema-direita. Por isso, é importante evitar que o conceito de nação, tão caro a setores da classe média, não dilua especificidades da complexa realidade brasileira. No livro “Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho”, o sociólogo brasileiro Ricardo Antunes fala da classe-que-vive-do-trabalho. Para este setor, as novidades recentes da política brasileira são explícitas a partir das contrarreformas aprovadas pelo Congresso e são bastante desagradáveis. Esta classe-que-vive-do-trabalho é um sujeito coletivo fundamental para entendimento da realidade brasileira e sua transformação.

Pedro Cardoso segue dizendo: “(…)Nada de novo surgiu. As últimas eleições municipais são a prova. Os partidos mais votados foram os mais tradicionalmente corruptos. É preciso entendermos esse resultado para nos prepararmos contra a repetição dele em 22. Mas, alguém me diga, temos visto, nos espaços públicos profissionais ou nos amadores, alguém dedicado a pensar o porquê do resultado das últimas municipais? Muito poucos se algum. O novo só surge do velho. É preciso compreender para ser capaz de romper.”

É verdade que as eleições de 2020 foram vencidas pelos partidos que se situam na chamada direita neoliberal não-bolsonarista. Estes são os setores políticos que viabilizaram o golpe de 2016, que contribuíram para a eleição de Bolsonaro em 2018 e que, no Congresso Nacional, dão sustentação às suas políticas antipovo defendidas pelo mercado. Ou seja, a ruptura com este estado da arte indica a necessidade do país passar a discutir a sua não subordinação ao rentismo, a geração de empregos e retomada da expectativa de futuro para grande parte de nossa população. A saída do país não está na cúpula com acordos pelo alto, mas a partir de lutas sociais.

Também é verdade que o novo só surge do velho. Movimentos que deram origem ao Syriza, na Grécia e ao Podemos, na Espanha, foram bastante celebrados como novidades no campo da esquerda e que vitalizaram os parlamentos com pautas sociais.

Agora imaginem um país com pouquíssima tradição democrática, com profundas heranças de um longo período escravocrata, acostumado a tratar como caso de polícia demandas sociais, ver surgir, a partir das mais diversas organizações populares, de Norte a Sul de seu território, um partido político que representa a ação autônoma de trabalhadores na política? Este é o petismo, concorde-se ou não com o que ele representa. Novidade maior que esta só se um pacto social fosse criado sob hegemonia dos trabalhadores e trabalhadoras. Todos os esforços na direita brasileira deste então (e mais recentemente na extrema-direita) foram no sentido de retrocedermos às condições políticas e sociais anteriores à existência do petismo.

Portanto, não é possível negar que é este petismo que, em última análise, unifica a direita a extrema-direita brasileira. Não é possível desconsiderar que a classe dominante brasileira tem no antipetismo elemento de mobilização política, por meio de aparatos estatais e ideológicos, como empresas de comunicação, igrejas e conteúdos para internet. Enfrentar a classe dominante e seus efeitos políticos, tentando isolar o petismo ou o igualando a fenômenos políticos antípodas é, para qualquer fim prático, esquecer quem são os verdadeiros adversários do povo brasileiro e fortalecer estes setores vitoriosos em 2020, como confere Pedro Cardoso. A tradição política brasileira de evitar conflitos e celebrar acordos pelo alto tem seus reflexos em setores médios que, não raro, defendem que o petismo deveria recuar (talvez em nome daquele velho conceito de nação) para evitar algum hegemonismo.

Primeiro, evitar conflitos foi o que marcou as experiências petistas nos governos federais e o novo Brasil que foi construído a partir daí é o Brasil do bolsonarismo. Segundo, se qualquer pessoa pode ter sua opinião, por que os milhares de agentes pastorais, sindicalistas, estudantes, militantes de movimentos sociais e intelectuais que, durante mais de 40 anos, dedicam sua vida à construção de uma experiência coletiva que se expressa no PT não podem ter a sua própria opinião e expressá-la ao conjunto da sociedade? Terceiro, recuar em nome de que e de quem? No campo da esquerda, majoritariamente, o que percebemos são posições mais recuadas que as do PT que, na prática, colocariam as forças populares em situação pré-1989, quando eram, no máximo, linha auxiliar de algum setor da classe dominante.

Voltando às palavras de Pedro Cardoso: “Mas nos mantemos discutindo pessoas em lugar de projetos, e isso é o que de mais ultrapassado ainda não se nos passou. Lula e Ciro surgem da mesmice como únicos possíveis oponentes eleitorais a Messias. Ao menos, até aqui; e nada indica que será diferente. Acho Ciro novidade maior do que Lula, não por Lula, mas mais pelo petismo.”

Novamente guardo convergência com no que se refere ao atraso, do ponto de vista da Política, em se discutir pessoas e não projetos. Porém, segundo este critério há duas contradições neste trecho. Primeiro, comento a última. Ao defender projetos e não pessoas, Cardoso prefere Ciro ao invés de Lula, não por causa de Lula, mas por causa do petismo. Ciro e Lula são pessoas, o petismo é um projeto e que, se não encontra este reconhecimento em Pedro Cardoso, nem sempre encontra na própria direção do PT, explico.

Desde a consolidação da hegemonia neoliberal, a esquerda (e não apenas o PT), majoritariamente, tem se comportado como ala progressista do liberalismo político burguês, abandando qualquer construção de uma nova forma de organização social. Como o Brasil não tem uma burguesia com projeto nacional, não tivemos por aqui a consolidação de institutos básicos dos direitos sociais. E, com o refluxo verificado nas esquerdas do mundo inteiro a partir do fim da Guerra Fria, o que era piso passou a ser o teto destes setores: a construção de políticas públicas que melhorem a vida do povo. Este projeto está aquém das necessidades políticas de grande parte do povo brasileiro uma vez que não encontramos disposição na elite econômica brasileira de respeitar suas próprias regras. Ou seja, é um modelo que precisa ser debatido, revisto, questionado e modificado. Mas, é um projeto e não um CPF ou RG de uma personalidade.

Segundo, comento a primeira contradição desta parte do texto. Como se almeja projeto ao invés de pessoas e aponta-se para Ciro Gomes para melhor alternativa? Aqui não há nenhum juízo de valor sobre a figura política de Ciro Gomes. Se Lula está vinculado ao petismo, como aponta Pedro Cardoso, Ciro Gomes está vinculado ao qual projeto? Até que ponto colocar uma personalidade como alternativa não é reforçar um defeito do sistema político brasileiro que favorece o voto em pessoas e não em partidos? Votar em pessoas e não em partidos é ou não sinal de despolitização da política, que dará brechas para enfraquecimento da democracia? Afinal, pessoas mudam de ideias, de humor, de profissão, de interesses, etc. Ciro Gomes, como se sabe, já foi do PDS, do PMDB, do PSDB, do PPS, do PSB, do PROS e hoje está no PDT. Obvio que qualquer pessoa pode mudar de ideia e de partido. Mas, para aquelas pessoas que optam por pensar a política a partir de construção de projetos, atuar a partir de decisões individuais não é producente. Ademais, como perguntar não ofende, qual projeto Ciro Gomes representará, se candidato for? Lembremos que Marina Silva defende a autonomia do Banco Central também defendida por Bolsonaro, embora sejam personalidades bem diferentes.

Embora não seja possível separar Lula do PT, o lulismo e o petismo são fenômenos distintos. O lulismo foi categorizado pelo cientista político André Singer, no artigo “Raízes sociais e ideológicas do lulismo” e no livro “Os sentidos do lulismo”. Trata-se de uma relação de representação política de setores da classe trabalhadora brasileira com altos custos de participação, resultando em baixo potencial de organização, e que não representa nenhuma ruptura com a ordem, ao contrário, podendo expressar inclusive seu reforço.

Prosseguindo com o texto de Cardoso, ele diz que “Lula, no entanto, nos devolve algo de valor inestimável e fundamental: UMA LINGUAGEM nossa. Lula pensa brasileiramente e fala como o Brasil fala. E isso não é nada pouco. Lula é um erudito popular. Mas ainda assim, me inclino por Ciro. Não me contestem com os defeitos de um e outro; eu não os nego nem confirmo. Eu apenas os relevo qdo o inimigo a ser vencido é a máquina mortal do fundamentalismo de falsa fé do bolsonarianismo alucinado”.

Aqui Pedro Cardoso desfaz aquela equiparação entre forças políticas que fez no início. E reconhece que Lula devolve algo inestimável e fundamental: uma linguagem nossa. Os adjetivos escolhidos poderiam falar por si. Mas, também precisamos pensar a respeito. O jornalista Breno Altman costuma dizer que até hoje, a esquerda brasileira produziu apenas três grandes líderes de massas: Luis Carlos Prestes, Leonel de Moura Brizola e Luís Inácio Lula da Silva, sendo este último o único que conseguiu governar o país. Ou seja, a formação de líderes na esquerda é um processo que leva gerações. Diferente da direita que tem os meios para produzir lideranças como quem faz macarrão instantâneo.

É possível que Pedro Cardoso não discorde do fato de que Lula tem esta capacidade de representar nossa uma linguagem nossa porque simboliza nosso povo na agenda política do país. Nenhuma outra liderança brasileira tem essa identidade e essa relação orgânica com nosso povo. As elites brasileiras sabem muito bem disso, seja para combatê-lo ou para tentar cooptá-lo. Porém, não existiria Lula sem o PT. A liderança de Lula é resultado de um acúmulo e amadurecimento político da organização da classe trabalhadora.

Finalmente, Pedro Cardoso Afirma: “Já q o futuro nem se anunciou, que a gente então se defenda com o que de menos velho havia no passado. Ciro ou Lula já é vitória. Agora, Dória, Amoedo, Luciano ou Moro é a permanência de algo do bolsonarianismo. O algo que os fez votar nele. Derrota para a democracia. É assim que penso nesta madrugada portuguesa. Logo amanhecerá”.

O projeto que as elites brasileiras oferecem para o futuro é um retorno ao passado. Do ponto de vista político, pré Constituição de 1988. Do ponto de vista de econômico, pré Consolidação das Leis Trabalhistas. Com liberdades democráticas é mais difícil encaixar um país de 210 milhões de pessoas em um modelo agrário-exportador como éramos na primeira metade do século passado. Precisamos de mais democracia, de mais direitos sociais, de mais investimentos, de mais soberania nacional, com respeito à diversidade de nosso povo e ao nosso meio ambiente. Projetos políticos se aproximam ou se afastam destas necessidades a partir da prática política.

Pedro Cardoso rejeita Dória, Amoedo, Luciano e Moro, mas estes quatro, junto com Mandetta e Ciro Gomes assinaram um genérico manifesto pela democracia, sem definição programática, como se não tivessem nada a ver com a vitória de Bolsonaro em 2018. E ainda em termos práticos, em um eventual segundo turno entre Lula e Ciro, aqueles que votaram em Bolsonaro em 2018, escolheriam quem? E já que comparações fazem parte deste texto, entre Lula e Ciro não é interessante esquecer que um preferiu a prisão para provar sua inocência e outro preferiu ir para Paris, no momento que poderia ajudar a derrotar o bolsonarismo.

Em 1988, Cazuza foi entrevistado por Jô Soares no programa “Jô Soares Onze e Meia”. Naquela ocasião, ele disse que gostava muito do PT, mas não apreciava o radicalismo do partido. Essa era, mais ou menos, a exigência de setores médios para votarem no PT. Mais de três décadas depois, o problema parece ter sido o fato de PT ter se tornado um partido da ordem.

Por fim, não haverá soluções individuais para problemas coletivos. Organizar-se coletivamente significa o ônus de precisar se relacionar com as contradições da realidade, mas há o bônus de ser mais consequente na construção da política, para além de nossas impressões pessoais, por mais relevantes que sejam. Em meu primeiro semestre de graduação tive a sorte de ser aluno do professor Artur Perrusi. Em uma de suas aulas, falando sobre Nicolau Maquiavel, o professor dizia que a Política também é um conhecimento prático e, por outras linhas, poderíamos perceber as intenções do pensador italiano naqueles versos de Cazuza que dizem: “bobeira é não viver a realidade”. Esta longa noite passará, irá amanhecer e nossa luta segue sendo fundamental para que o dia nasça feliz outra vez.

Segue link da postagem: https://www.instagram.com/p/CNMSsQwA96-/?igshid=14rip9cmr707z

Segue o texto de Pedro Cardoso: “Bom dia. O melhor segundo turno seria entre Ciro e Lula, na minha opinião. Quem me faz companhia por aqui sabe do meu desejo de que algo novo surgisse no Brasil; algo sob o quê a política tradicional se desvanecesse e petismos e bolsonarianismos e pesdbismos e centrismos dessem lugar a outros movimentos de melhor qualidade. Mas não aconteceu. Nada de novo surgiu. As últimas eleições municipais são a prova. Os partidos mais votados foram os mais tradicionalmente corruptos. É preciso entendermos esse resultado para nos prepararmos contra a repetição dele em 22. Mas, alguém me diga, temos visto, nos espaços públicos profissionais ou nos amadores, alguém dedicado a pensar o porquê do resultado das últimas municipais? Muito poucos se algum. O novo só surge do velho. É preciso compreender para ser capaz de romper.Mas nos mantemos discutindo pessoas em lugar de projetos, e isso é o que de mais ultrapassado ainda não se nos passou. Lula e Ciro surgem da mesmice como únicos possíveis oponentes eleitorais a Messias. Ao menos, até aqui; e nada indica que será diferente. Acho Ciro novidade maior do que Lula, não por Lula, mas mais pelo petismo. Lula, no entanto, nos devolve algo de valor inestimável e fundamental: UMA LINGUAGEM nossa. Lula pensa brasileiramente e fala como o Brasil fala. E isso não é nada pouco. Lula é um erudito popular. Mas ainda assim, me inclino por Ciro. Não me contestem com os defeitos de um e outro; eu não os nego nem confirmo. Eu apenas os relevo qdo o inimigo a ser vencido é a máquina mortal do fundamentalismo de falsa fé do bolsonarianismo alucinado. Já q o futuro nem se anunciou, que a gente então se defenda com o que de menos velho havia no passado. Ciro ou Lula já é vitória. Agora, Dória, Amoedo, Luciano ou Moro é a permanência de algo do bolsonarianismo. O algo que os fez votar nele. Derrota para a democracia. É assim que penso nesta madrugada portuguesa. Logo amanhecerá. ????❤️”