A intolerância religiosa e a mutilação da estátua de Iemanjá em João Pessoa

A intolerância religiosa é considerada uma forma de violência de caráter físico, emocional ou simbólico, constituindo-se enquanto ato discriminatório, ofensa e agressão às pessoas por causa de sua crença e/ou prática religiosa.

O ódio fomenta a intolerância, atravessa a existência e extrai o que há de humano em nós, tirando-nos a própria humanidade. É um sentimento de hostilidade que apenas os humanos são capazes de produzir. Grande parte dos ataques de ódio tem como alvo pessoas negras de comunidades religiosas afro-descendentes e afro- ameríndias. E essa, é sem dúvida, uma questão política, social e histórica, pois estão na base da estrutura colonialista brasileira.

O colonialismo é uma ferida aberta deixada pela Europa nos países do continente africano e naqueles impactados por essa concepção de exploração econômica e de dominação política que oprimiu colonizados e gestou o racismo. Para o escritor martinicano Aimé Césaire (1978), na obra “Discurso sobre o colonialismo”, o racismo é a ferramenta operacional do capitalismo, que pariu o colonialismo e gestou o fascismo. Para o autor, que reforça o caráter violento e desumanizante do colonialismo, tudo está interligado. O embuste da colonização sob o pretexto do ato civilizatório é em verdade, segundo Césaire (1978, p. 15), puramente mercantilista, mas sob o manto do “pedantismo cristão” o colonizador trouxe consigo a equação que anuncia o cristianismo como ação civilizatória e o paganismo como algo próprio dos selvagens. As consequências inúmeras dessa equação nefasta oprimiram negros, indígenas e amarelos (CÉSAIRE, 1978). De tal modo, o colonialismo se apoiou na religião cristã e na tal “ação civilizatória” imposta pelo homem ocidental. Nesse caso me refiro ao homem mesmo, tendo em vista que a mulher não alcançava, nesse período – e hoje ainda em muitos países não alcança – um estatuto ontológico em si mesmo.

Quando Césaire (1978) se refere ao caráter violento e desumanizante do colonialismo, alude não apenas ao grupo colonizado. Para ele, o colonizador também se embrutece e desperta seus piores e mais desumanos instintos para violar o colonizado, desumanizando-o e desfigurando-o. E foi dessa forma que o colonialismo pariu Hitler e os autoritarismos que surgiram ou tentaram surgir. E foi essa ótica burguesa que pariu o colonialismo, que trouxe consigo o patriarcalismo, o racismo e a misoginia.

Na Paraíba um caso emblemático é o da depredação da Estátua de Iemanjá, localizada na praia do Cabo Branco, em João Pessoa. Ela foi danificada pela primeira vez em abril de 2013, tendo sua cabeça arrancada e as mãos decepadas em um claro caso de intolerância religiosa. Restaurada pelo Patrimônio Artístico e Cultural de João Pessoa, a estátua foi novamente violada em 2016, quando teve a cabeça cortada e os dedos quebrados. Até hoje ninguém foi punido.

A iemanjá degolada não gerou no poder público nenhuma reação, nenhuma indignação entre os políticos e os órgãos públicos. Diante do silêncio e da falta de ações que busquem recuperar ou construir uma nova imagem e realocá-la em um espaço público iluminado e seguro, diversos grupos da Paraíba, como o grupo de mulheres de terreiro iyálodê, lideranças religiosas e adeptos das religiões de matriz afro-brasileira e afro-indígena, além dos movimentos de mulheres negras como o Abayomi – coletivo de mulheres negras da Paraíba, realizaram ações no dia 21 de março de 2023 – dia internacional de luta contra a discriminação racial e dia nacional das tradições das raízes de matrizes africanas e nações de candomblé, com o objetivo de denunciar o descaso e o racismo institucional que subjaz silenciosamente nas instituições públicas que deveriam zelar pelo patrimônio público da cidade ao invés de calar diante da intolerância religiosa.

É interessante observar que as festas para Iemanjá acontecem no final de dezembro em João Pessoa, organizada pela Federação dos Cultos Africanos do Estado da Paraíba, reunindo diversos terreiros da capital paraibana além de simpatizantes e curiosos. A festa já virou uma tradição na cidade e é frequentada por centenas de pessoas. Tal fato, no entanto, não impediu a violência contra esse símbolo de caráter sagrado para os adeptos da religião e para muitos os pescadores que veem na imagem uma proteção para entrar no mar. A estátua de Iemanjá é um patrimônio público de João Pessoa desde 1966, já a festa existe desde 1965 na cidade.

João Pessoa é uma cidade predominantemente católica, seja o catolicismo popular ou ortodoxo. Uma cidade cristã que sempre conviveu bem com a festividade e mesmo com a existência da estátua da Orixá, pelo menos aparentemente não há registros de depredação anteriores a 2013. Talvez o avanço do fundamentalismo religioso possa explicar alguns fatos recentes como esse em João Pessoa, tendo em vista que o aumento da intolerância religiosa cresceu em todo país, especialmente nos últimos anos.

Se fizermos um recorte histórico é possível perceber que de 2013 até 2018 houve uma crescente participação de evangélicos neopentecostais nos protestos ocorridos no Brasil, todos inflados pela chamada bancada da bíblia e com apoio de pastores e de uma parte da mídia, aliás, mídia que cobriu protestos ao vivo e que, certamente, são capitaneadas pelo capitalismo e pela herança colonialista, portanto, a herança racista e misógina. Não por acaso, no ano de 2013 o Brasil era governado por uma mulher, a então presidenta Dilma Roussef, que fomentava políticas afirmativas públicas de inclusão da população negra, dos LGBTQIAP+, das mulheres e demais grupos vulnerabilizados historicamente. Em 2016 os capitães do mato e os colonialistas de plantão gestaram o golpe contra a presidenta para “parar a sangria desatada” – palavras do então senador Romero Jucá. O objetivo do golpe era cessar as políticas afirmativas e silenciar as pessoas que começaram a ter voz e um lugar social e político no país. O golpe foi também contra os negros, contra os povos de terreiros, contra as religiões de matriz afro-brasileira e afro-indígena. E após o golpe tivemos um longo e tenebroso período de apagamentos, silenciamentos, mas tivemos também um longo período de reconstrução interna e muita resistência. Não nos desumanizamos com o golpe de 2016 nem com a eleição do autoritarismo, resistimos!

A estátua de Iemanjá, simbolicamente continua fomentando a resistência diante da violência e do silenciamento do poder público. A voz dos terreiros, a voz do povo negro, das mulheres negras ecoa no tempo e no espaço através do simbolismo que há na estátua em si e também na estátua decapitada. O Ori, do iorubá, cabeça, é também uma intuição espiritual e um destino que exige de cada um caráter, coragem e bons pensamentos. A estátua decapitada é uma imagem que mostra que todos os dias as pessoas vulnerabilizadas pelo sistema sofrem a tentativa de mutilação desde o colonialismo e ainda assim resistem e alimentam seu Ori com resiliência, amor e esperança como forma de resistência, denunciando as atrocidades e as tentativas de silenciamento. Estas são as principais armas do oprimido, além das políticas afirmativas de combate ao racismo religioso e a intolerância religiosa.

Arrancaram a cabeça e os dedos de Iemanjá, o poder público silenciou e/ou ignorou a violência porque assim o faz todos os dias contra a estátua e tudo que ela representa. Odoyá!

 

Referencias:

CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Trad. Noémia de Sousa. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 1978.

TELES, Mônica Maria Ferreira. A cartografia turística de João Pessoa e seus discursos sobre a cidade. Tese – Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo-USP, 2015. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8136/tde-15072015-150344/publico/2015_MonicaMariaFerreiraTeles_VCorr.pdf. Acesso em Mai 2023