A gênese do mal: uma reflexão sobre fanatismo e alienação

A partir da reflexão do Vigário Saboiano na coluna anterior é interessante fazer alguns questionamentos, dentre eles, se é mais importante a ação ou a palavra?

Ao final do texto da coluna anterior, o vigário arremata seu discurso reafirmando que “um coração justo é o verdadeiro templo da Divindade” (ROUSSEAU, 1999, p. 367) e nenhuma virtude existe sem a fé. Esses são sentimentos que devem ser cultivados intimamente a partir do amor a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Eu me pergunto: a ação que demonstre amor ao próximo, realizada por um coração virtuoso não tem validade caso esse coração seja de uma pessoa que não creia na igreja cristã? E se a ação realizada na mesma forma e sentido partir de uma pessoa que professe uma fé não-cristã, essa ação é valida ou condenada pelos cristãos? E me pergunto ainda: que Cristão é esse sem Cristo, que condena os diferentes e as diferenças? Por que o ateu, que pratica boas ações e segue o que o Cristo pregou em seus mandamentos de forma concreta, e não apenas retórica, é desprezado e desqualificado como pessoa por parte de alguns religiosos?

Vi um vídeo esses dias que me trouxe profunda inquietude. Nele um rapaz perguntava se os pais deixariam seus filhos com um assassino ou com um ateu, com um estuprador ou um ateu, um ladrão ou o ateu. Para minha inteira perplexidade, as pessoas preferiram o assassino, o estuprador, o ladrão. Mais uma vez, como na história da bíblia, o povo escolheu Barrabás…

Ser bom, justo e coerente não tem a ver com religião, mas com humanidade, serenidade e discernimento. Humanidade está relacionada à empatia, alteridade e coletividade. Ninguém É sozinho – Aqui o “é” tem sentido de verbo! A existência tem relação com o coletivo e comunitarismo.

Santo Agostinho, filósofo medieval, afirma que a vontade do ser humano é que determina sua escolha em fazer o bem ou fazer o mal. Para ele o mal é praticado quando o entendimento não domina os desejos, logo, habita no ser humano o desejo do mal e ele afirma ainda que, para reconhecer a ação boa ou má, é preciso se colocar no lugar do outro e, se for uma má ação, não se desejaria que fosse feita para si, caso seja uma boa ação, desejaria para si. Ou seja, segue o ditado popular atribuído ao filosofo Confúcio: “Não faças a outro o que não queres que te façam”. Aqui encontramos a vontade e livre-arbítrio que permite escolher entre o bem e o mal.

Na obra “Emilio” ou “Da Educação”, Rousseau afirma que nas mãos do homem, tudo degenera, como falamos na coluna anterior. Segundo ele, o homem não permite que a natureza siga seu curso natural e tudo que não temos ao nascer, e de que precisamos adultos, é-nos dado pela educação. Rousseau parte do pressuposto de que o homem nasce naturalmente bom e que a sociedade é quem o corrompe, ou seja, que o homem da natureza é bom e o homem social é o sujeito corrompido. Apesar disso, Rousseau assegura que a sociedade é o único lugar em que o homem natural pode se tornar moral e compensar os processos de corrupção. 

Para Thomas Hobbes “o homem é o lobo do homem”, o que significa que o homem tem uma tendência natural à maldade, ao individualismo e ao egoísmo. Hobbes, autor de Leviatã – um tratado sobre a organização social, pensava o homem em seu estado natural como essencialmente mau, e para viver em sociedade ele precisa de regras, de normas de convivência. Nesse sentido, para se tornar sociável, é preciso renunciar à coisa mais importante num estado de selvageria, que é a liberdade, e para isso, faz-se necessário um pacto social, quando todos abrem mão de seu direito em nome de um único soberano. A partir de sua teoria do pacto social, Hobbes abre espaço para a distinção entre o poder divino e secular, pois, para ele, um rei não devia seu poder a um desígnio divino, mas a uma necessidade social onde deveria prevalecer a igualdade entre os homens, e para o qual, seu governante deveria ser um representante legítimo com vistas a assegurar a paz e a prosperidade entre o seu povo. Ou seja, o povo em primeiro lugar, até porque sem o povo não existe Estado.

Agir de forma coerente, ética e socialmente necessária é o que alimenta a sociedade. A religião deveria servir ao propósito divino, embora seja uma criação humana. E sendo a religião essencialmente coletiva, deveria estar a coletividade acima dos interesses egoístas e individuais, o propósito divino me parece ser o de uma sociedade de amor e fraternidade, pelo menos é o que enxergo quando penso na imagem do Cristo que se vestia de amor e de cura por onde andava, o que transformou agua em vinho, que protegeu Maria Madalena e que curou cegos e aleijados. 

Mas Cristo foi crucificado pelo sistema que não queria perder seu poder e foi desprezado pelas pessoas levadas pelo discurso de ódio dos governantes. Apesar das ações de Cristo, muitos se envolveram apenas com a retórica do ódio dos que governavam e libertaram Barrabás, não aquele que curava e pregava o amor. Repito: ser bom, justo e coerente não tem relação com religião, tem a ver com humanidade, serenidade e discernimento.

O homem pode até ser o lobo do homem, mas se os governantes propiciam uma educação libertadora que permita o diálogo e a dignidade humana, é possível viver em harmonia. Isso é pressuposto básico para a construção de um pacto social. O pacto construído a partir desses destes poderia romper e desconstruir a gênese do mal: a mentira e a ignorância que alienam e constroem mitos frágeis e sem fundamentação real. Só a partir de então é possível edificar uma arquitetura social fundamentada em fatos concretos, sólidos, em ações que alimentam a própria sociedade, independente de religião e  crenças.

E se o homem não for o lobo do homem no sentido em que Hobbes remete, se ele for naturalmente bom, mas sendo corrompido pela sociedade, conforme Rousseau afirma, a educação libertadora que lhe permitirá o discernimento e o senso crítico que o fará não sucumbir a corrupção da sociedade.

Em ambos os casos, ver-se que é a educação que pode libertar do julgo da servidão e da ignorância, do fanatismo que desconstrói o pacto social, que aliena. É a educação que pode  desconstruir mitos, mentiras e matar por inanição a gênese do mal. E não importa os adornos falaciosos dos discursos vazios, a retórica e os sofismas, importa o modo de Ser e agir socialmente. A ação é mais importante que a retórica fundamentada em mentiras. A escolha no agir com retidão de caráter dentro de uma consciência moral, independente de ser cristã ou não, na perspectiva da alteridade, da coletividade e da empatia, conforme Santo Agostinho, permite um forte alicerce para a construção do pacto social que desconstruirá os mitos nocivos à humanidade.

 

REFERÊNCIA:

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio; trad.: Roberto Leal Ferreira – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 342 – 371 

AGOSTINHO, Santo. Confissões. 7. ed. São Paulo: Paulus editora, 2016.

AGOSTINHO, Santo. O Livre Arbítrio. 10. ed. São Paulo: Paulus editora, 2019.

HOBBES, T. Leviatã. Tradução: João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Martins Fontes, 2003

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Emílio; trad.: Roberto Leal Ferreira – 2a ed. – São Paulo: Martins Fontes, 1999,  p. 342 – 371 se