A filosofia e as descontextualizações feitas pelo ocidente – Parte I

Há algum tempo publiquei um texto na Revista LibertAção, um periódico do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Filosofias (Nepefil) da Universidade Estadual da Paraíba /UEPB. No referido texto faço uma reflexão sobre a descontextualização da filosofia africana por parte do ocidente. Nas próximas colunas gostaria de trazer um pouco dessa reflexão para repensarmos nossos conceitos, para ampliarmos nossa visão de mundo e exercitarmos nossa criticidade, algo necessário para entender o mundo e as conjunturas pelas quais passamos e que muitas vezes nos oprime, seja através da educação, seja através da religião ou da política, frutos de uma conjunção de fatores culturais que precisam ser sempre pensados e repensados, pois a história, a cultura e a própria existência é dinâmica. Nada é estático no mundo, nem nós!

À filosofia cabe o pensar, o repensar, independente de fronteiras étnicas ou geográficas. Uma discussão interessante é trazida à luz pelo filósofo camaronês Marcien Towa traz a filosofia como sendo “a coragem de pensar e o ser filosofante como aquele que se lança nessa aventura de pensar o absoluto, independente de sua etnia” (TOWA, 2015, p. 10). De tal forma, pode-se dizer que a filosofia seja o pensamento sobre o absoluto e esse pensamento sendo oriundo de todo aquele que traz em si essa capacidade, independe de região geográfica. Towa (2015) tenta circunscrever o domínio da filosofia e afirma que uma das principais características dela é sua capacidade dialética. Na filosofia, segundo ele, não há espaços para fé, pois esta se assenta na racionalidade, enquanto a fé, na crença cega.

Dentro dessa perspectiva, negar a existência de uma filosofia africana, ou outras filosofias quaisquer, negar a capacidade do pensamento raciocinado e com encadeamento lógico por parte de outros povos ou etnias, como ocorre com o pensamento africano, é um grave sintoma de intolerância e opressão, algo que teve seu início marcado na história da humanidade (ou desumanidade) através de uma diáspora permeada pelo genocídio, etnocídio e epistemicídio dos povos do continente africano. Você já ouviu falar dos filósofos africanos ou de outros continentes que não seja o europeu?

O filósofo Renato Noguera (2015), afirma que o represamento do pensamento como um imposição eurocêntrica colonial tem gerado recorrentes epistemicídios para a manutenção do eurocentrismo e seu mito europeu do nascimento de uma filosofa grega, o que, segundo ele, Jaques Derrida chama de mitologia branca, a forma europeia do mito. Para o autor, “os textos egípcios são documentos africanos mais antigos do que os escritos gregos, que são as referências da cultura ocidental” (NOGUERA, 2015, p. 40). Esse reducionismo limitante da tradição eurocêntrica é um problema muito mais político que acadêmico, e tem a subordinação como projeto de poder e “que pretende calar qualquer filosofia que tenha sotaques diferentes” (NOGUERA, 2015, p. 43). Carlos Serra (2015) reforça essa tese ao afirmar que uma conversão social que foi transformada infraculturalmente com o objetivo de desumanizar ou descaracterizar a humanidade do outro para subjugá-lo. Mas, nessa cruel diáspora, mesmo sendo destroçada e abatida, a cultura, a filosofia e muito da religiosidade do povo negro, sobreviveu a agressão física, moral e intelectual, reconstruindo sonhos, vidas e ressignificando sua existência. Não cabe aqui questionar a contribuição de toda estrutura filosófica eurocêntrica nem o lugar de nascimento da filosofia, tampouco é esse o objetivo. Mas cabe, a todo e qualquer filósofo, como prega a própria filosofia, questionar seus estatutos, limites e arcabouço estrutural e epistemológico; questionar o que cabe no guarda chuva do estatuto epistemológico da filosofia. Alguns autores ponderam essa indiferença em relação a filosofia não produzida dentro do eurocentrismo como sendo um ‘apartheid1’ epistemológico, produto do colonialismo. Segundo Haddock-Lobo (2015, p 34):

o processo de imposição filosófica, aliado à subordinação política, acaba promovendo uma espécie de colonização do pensamento, em que as experiências filosóficas seriam paulatinamente substituídas pelas do colonizador, ou seja, embranquecidas, gerando o que alguns especialistas chamam de epistemicídio, um etnocídio na esfera do pensamento.

No arcabouço da filosofia africana, a palavra Ubuntu tem muito a dizer para a filosofia ocidental. Seu conceito se situa a partir da compreensão de uma ontologia, uma ética e uma epistemologia. O pensamento africano do Ubuntu se caracteriza pela humanidade com os semelhantes através da veneração aos ancestrais, de forma fraterna e com compaixão, numa visão unificadora da existência no mundo:

Ubuntu (a Zulu word) serves as the spiritual foundation of African societies. It is a unifying vision or world view enshrined in the Zulu maxim umuntu ngumuntu ngabantu, i.e. “a person is a person through other persons” (Shutte, 1993, 46). At bottom, this traditional African aphorism articulates a basic respect and compassion for others. It can be interpreted as both a factual description and a rule of conduct or social ethic. It both describes human being as “being-with-others” and prescribes what “being-with-others” should be all about. As such, Ubuntu adds a distinctly African flavour and momentum to a decolonized assessment of the religious other. In fact, the various overlaps between such an assessment and the African way of life as described/prescribed by Ubuntu, make this assessment nothing but an enactment of the African Ubuntu2 (LOUW, 1998, p. 2).

O termo, portanto, é uma marca identitária que se relaciona diretamente com o conceito de humanidade, além de abranger o que é intrínseco a este: a cooperação, o respeito, o acolhimento. Nesse sentido há no ubuntu um ethos relacionado à alteridade, comunidade, espiritualidade, estes por sua vez, se relacionam com o passado e com o ciclo das existências futuras, portanto, com a ancestralidade, o que confere um caráter altamente complexo de uma ontologia filosófica cujo arcabouço está além das categorias tradicionais ocidentais.

Jean-Bosco Kakozi (2018) relaciona a palavra Ubuntu diretamente com o conceito de humanidade, perpassando a visão do indivíduo acerca do mundo a partir de uma postura ética individual, uma postura política e social diante da existência, pois ubuntu é, sobretudo, ser através do outro, por isso é também uma reação política que diz respeito a todas as pessoas de uma comunidade, da coletividade. Para Magobe Ramose (2002, p. 324) ubuntu é a origem da filosofia africana e está relacionado à politica, à ética e à ontologia, repousando sobre um consistente alicerce filosófico, sendo a “quinta categoria básica da Filosofia africana”.

Para Leopold Senghor (1964), ubuntu é uma filosofia da alteridade, onde o sujeito se realiza através do outro: “Eu sinto o Outro, eu danço o Outro, então eu sou” (SENGHOR, 1964, p. 259). É uma filosofia cujo caráter político denota uma indissociabilidade entre o caráter social e a democracia no progresso da emancipação das populações africanas, numa cosmovisão político-social de um ideal de “civilização do universal, simbiose de todas as civilizações diferentes” (SENGHOR, 1977, p. 12).

Para Frantz Fanon (2008) os valores humanos devem nortear a nossa conduta através da busca da humanidade no outro. Seus textos denotam claramente a necessidade de uma construção social pautada na ética do ubuntu. A filosofia africana do Ubuntu, portanto, gira em torno da compreensão de uma ontologia, uma ética e uma epistemologia, que se estabelece através de uma postura política individual e coletiva, caracterizando uma marca identitária do povo africano subsaariano que estabelece uma metafísica condutora de uma ética que visa fortalecer, cuidar, gerar e transmitir vida, se situando como uma filosofia da alteridade que integra razão e sensibilidade, o que não acontece no arcabouço filosófico da tradição ocidental que encontrou no pensamento cartesiano a ruptura entre os aspectos sensível e racional.

De tal forma, pode-se pensar o ubuntu como uma oposição ao pensamento do filósofo francês René Descartes que estabeleceu, no século XVII, a res cogitans (coisa pensante) que encontra obstáculo numa res extensa (coisa extensa) que é o corpo. Essa ruptura que influenciou as gerações posteriores da filosofa no ocidente se coloca como um ponto a mais no distanciamento entre a filosofia antropocêntrica ocidental e a cosmovisão biocêntrica africana, cuja compreensão é de que todas as formas de vida são igualmente respeitáveis, não sendo a humanidade o centro da existência. Me refiro como sendo “um ponto a mais” tendo em vista que a dogmatização do pensamento filosófico eurocêntrico é a premissa primeira da argumentação acerca da descontextualização da filosofia africana para “pensar esse grande pilar que nos constitui e que vem epistemologicamente sendo redescoberto e desvarrido de debaixo do tapete, inspirados em tantas críticas possíveis e assombrados pela autocrítica fundamental ao pensamento” (HADDOCK-LOBO, 2015, p. 35).

Para acessar a leitura completa do artigo que inspirou a coluna de hoje, segue o endereço eletrônico da revista Libertação:

NEGREIROS, Regina. Filosofia Africana: um contexto descontextualizado pelo ocidente. Revista LibertAção – A Filosofia, a Educação e suas Interfaces – Disponível em: https://revista.uepb.edu.br/REFIEDI/article/view/194. https://doi.org/10.48098/refiedi.v2i1.194

7. REFERÊNCIAS

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008

HADDOCK-LOBO, Rafael. Por uma crítica das razões mestiças: à filosofia compete incorporar novas experiências de pensamento. Dossiê Filosofia da ancestralidade. Revista CULT, n. 204. Agosto, 2015, p. 34-36

KAKOZI, Jean Bosco. Filosofia africana: a luta pela razão e uma cosmovisão para proteger todas as formas de vida. 2018. Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/05/filosofia-africana-a-luta-pela-razao-e-uma-cosmovisao-para-proteger-todas-as-formas-de-vida/. Acesso em 02 jan. 2019.

LOUW, Dirk J. Ubuntu: an african assessment of the religious other. 1998. Disponível em: <https://www.bu.edu/wcp/Papers/Afri/AfriLouw.htm>. Acesso em 11 jan. 2019.

NOGUERA, Renato. Os gregos não inventaram a filosofia: é perigoso e reducionista limitar a aventura do pensamento a poucas tradições. Dossiê Filosofia da ancestralidade. Revista CULT, n. 204. Agosto, 2015, p. 40-44

RAMOSE, Mogobe B. A ética do ubuntu. Tradução para uso didático de: RAMOSE, Mogobe B. The ethics of ubuntu. In: COETZEE, Peter H.; ROUX, Abraham P.J. (eds). The African Philosophy Reader. New York: Routledge, 2002, p. 324-330, por Éder Carvalho Wen.

SENGHOR, Leopold Sédar. Négritude et civilisation de l’Universel . Paris: Seuil, 1977

SERRA, Carlos. O que é filosofia africana? Cadernos de ciências sociais. Lisboa: Escolar Editora, 2015.

TOWA, Marcien. A idéia de uma filosofia negro-africana. Trad. Roberto Jardim da Silva. Belo Horizonte: Nandyala; Curitiba: NEAB-UFPR, 2015

1 Foi um sistema de segregação da população negra, que vigorou entre 1948 e 1994, comandado pela minoria branca na África do Sul e que exigia a segregação racial.

2 Ubuntu (uma palavra zulu) serve como base espiritual das sociedades africanas. É uma visão unificadora ou visão de mundo consagrada na máxima zulu umuntu ngumuntu ngabantu, ou seja, “uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas” (Shutte, 1993, 46). No fundo, este aforismo tradicional africano articula um respeito básico e compaixão pelos outros. Pode ser interpretado como uma descrição factual e uma regra de conduta ou ética social. Ambos descrevem o ser humano como “ser-com-outros” e prescreve o que “ser-com-outros” deveria ser. Como tal, o Ubuntu adiciona um sabor e impulso distintamente africanos a uma avaliação descolonizada do outro religioso. De fato, as várias sobreposições entre tal avaliação e o modo de vida africano, conforme descrito / prescrito pelo Ubuntu, tornam essa avaliação apenas uma promulgação do Ubuntu africano – Trad. Livre.