A filosofia africana do Ubuntu: a coletividade e a política para um futuro de humanidade

A filosofia africana tem sua epistemologia fundamentada no coletivo, no pertencimento e na ancestralidade. Os ensinamentos do passado auxiliam a traçar os caminhos do presente e do futuro, pois a ancestralidade é um modo de ser e estar no mundo em um movimento contínuo e dialético. O estatuto epistemológico da filosofia africana, portanto, se fundamenta no Ser em si, no que existe e nos faz Existir através uns dos outros, pois “conhecimento é uma forma de comunalidade” (HAMMINGA, 2005, p. 58), que relaciona e conecta o coletivo.

Em tempos de egoísmo, antipatia, sectarismo e violência política e social, creio que é bastante pertinente falarmos sobre a alteridade e a coletividade presentes na filosofia africana do Ubuntu. Mas antes é importante fazer algumas considerações em relação a atual conjuntura política brasileira, o cenário das eleições de 2022 e a imposição do autoritarismo. E por isso, começo já trazendo a reflexão que vencemos uma das mais importantes eleições das nossas vidas. Evitamos o aprofundamento do caos e da barbárie que protagonizaram esses últimos anos após a ascensão do negacionismo, das mentiras e distorções da realidade, da tentativa de esmagar as populações minorizadas. Vencemos o autoritarismo! Certamente, se permitíssemos o prolongamento desse atentado antidemocrático ao Estado através desse nefasto governo que instalou uma verdadeira necropolitica em nosso país, não haveria país em quatro anos.

Resistimos duramente durante todo esse período que teve seu “start” lá trás, quando se começou a ser criado o ambiente do caos em 2013 e nada foi feito de forma a barrar os precursores do golpismo que que traziam consigo a misoginia, a lgbtfobia, o machismo, o patriarcado, a anticiência e o negacionismo da terra plana, o home schooling etc. E tudo isso  sob as bandeiras de um conservadorismo que ganhou espaços nas igrejas neopentecostais, no fundamentalismo de seus líderes e suas “ovelhas” que nada questionavam, apenas seguiam. Lembrando que, como disse anteriormente em uma coluna lá de 2021, as religiões podem ser progressistas  ou reacionárias . Podem libertar para uma cosmovisão ampla e humana, voltada para a alteridade e empatia, ou podem servir de bolha antidemocrática, invisibilizando ainda mais as pessoas vulnerabilizadas e oprimidas pelo sistema. Aliás, nessa mesma coluna, explico que o que move a religião é o coletivo dominante que direciona as massas conforme seus interesses. Isso é interferência política e é por isso que a política é um elemento que sempre esteve e está presente nas religiões. E não me refiro a partidos políticos! A combinação da política e da religião, somada aos interesses dominantes que subtraem de si os interesses de justiça social e igualdade de direitos, é a equação que move o Brasil.

Nesse cenário  de opressão política e religiosa com pautas conservadoras e fundamentalistas, não foi fácil resistir, não foi fácil existir! Foram noites e dias de angústia, de medo. Buscamos fôlego nos encontros coletivos para pensar essa resistência, os atos, as atividades políticas e culturais, as atividades na academia… Esses momentos se intercalavam. Nos momentos que parecíamos que iríamos sucumbir, eram essas atividades e os encontros que alimentavam os sonhos e as esperanças. Muitas vezes, fazendo uma referência ao poeta Rainer Marie Rilke, eu me perguntava: “quem, se eu gritasse, dentre os anjos me ouviria?” Acho que os anjos ouviram todos os nossos gritos, todo nosso estertor em incontáveis noites de angústia. 

Foram anos de aflição, desde a preparação para o golpe de 2016 até a eleição de Bolsonaro.  Resistimos e trouxemos mais pessoas para acampar desse lado do muro em vigília constante. Organizamos atos em plena Pandemia como as Carreatas fora Bolsonaro, organizamos festivais, encontros, e em cada atividade, renovamos nossa esperança. E parafraseando os versos imortalizados na voz de Gal Costa, estivemos atentos e fortes, sem medo de encarar a morte. Importante que quando me refiro a estar de um determinado lado do muro, faço menção ao conceito de Consciência de classe a partir de um cartaz que circulou nos anos 1970 na América do Norte e Europa onde constava a seguinte frase: “Class consciousness is knowing wich side of the fence you’re on. Class analysis is figuring out who is there whith you” (A consciência de classe é saber de que lado da cerca você está.  A análise de classe é descobrir quem está lá com você). Esse é um conceito que o Brasil colonial não conseguiu entender, e claro, jamais houve interesse por parte das elites dominantes de que o entendamos, pois a revolução se faz com consciência de classe e a dominação se faz pela ausência dela.

E porque resistimos? Porque ninguém soltou a mão de ninguém. Porque o que nos unia todo esse tempo, como disse a então senadora Simone Tebet, foi maior que o que nos separava. E essa ponte que nos une é o amor, a empatia, a humanidade e a vontade de construir um Brasil melhor para todas as pessoas, um Brasil Inclusivo, solidário e de paz. Resistimos e sobrevivemos para contar a história dos que não sobreviveram, dos que sucumbiram ao sofrimento, a covid, a fome, ao desepero, a depressão! Sobrevivemos porque é  necessário que a história seja contada e que nos sirva de lição para que não seja repetida.  O sinal estava fechado para nós, mas nós recuperamos nosso Ubuntu, princípio máximo de humanidade e respeito ao outro dentro da lógica filosófica africana, e que a partir dele possamos olhar para o passado (sankofa), e com os pés no chão, construirmos nosso futuro de liberdade, solidariedade, inclusão, empatia e equidade, pois como afirma o conceito também africano de Ukama, somos todos filhos da mesma mãe e bebemos do mesmo leite. Por isso é importante sempre retornar ao passado para que ele não se repita, com a consciência de que liberdade exige vigilância ou usando a frase de John Philpot Curran: “o preço da liberdade é a eterna vigilância”

E já que tanto falamos em Ubuntu e Ukama, é importante explicar seu caráter de coletividade e humanidade. No continente africano nos deparamos com a filosofia do Ubuntu, na qual repousa o fundamento que sem o outro não há nenhuma possibilidade de desenvolver-se enquanto ser humano, tendo em vista que é com a humanidade que se desenvolvem valores como solidariedade, equidade e inclusão social (MONTEIRO, 2020), de forma que a humanidade é um processo, um ser sendo, “uma atividade perene de humanizar-se junto aos demais” (MONTEIRO, 2020, p. 108). Ubuntu é um termo de origem zulu, segundo Jean Bosco Kakozi (2019, p. 10), no qual “encontramos um significado profundo do humano”. Seu conceito está relacionado a uma ética, aos deveres e obrigações morais com o coletivo, constituindo-se como uma práxis que envolve o entendimento do Ser no mundo.  Além disso, há um ‘status’ político onde o social e a democracia são indissociáveis no avanço para a emancipação das populações africanas, i.e., o conceito do Ubuntu em sua cosmopercepção político-social converge para o sentido de solidariedade, de alteridade, onde a existência é uma partilha social, comunitária.

O filósofo Jean Bosco Kakozi (2018) afirma que a Filosofia africana possui como conceitos fundadores os termos Ubuntu e Ukama. O autor relaciona a palavra Ukama com os conceitos de ancestralidade e irmandade. Já o termo Ubuntu, ele relaciona com ideia de humanidade. A relação entre Ubuntu e Ukama é intrínseca, estando as duas palavras conectadas, “com a ideia de humanidade e de relação com os outros seres. Ukama traz para Ubuntu essa afetividade que é elevada também a outro patamar, que é a afetividade com a natureza” (KAKOZI, 2018), por isso, deve-se partir do princípio de um pensamento integralizador, de uma cosmopercepção macro que integre razão e sensibilidade, termos estes separados na filosofia ocidental moderna. 

Gramaticalmente a palavra Ukama está relacionada à ideia de ordenhar, que por sua vez, está relacionada a extrair o leite das tetas do animal. No pensamento africano, no entanto, ordenhar é bem mais que isso: é afeto, pertencimento familiar, seja por consanguinidade ou não. Logo, Ukama não existe sem Ubuntu, que expressa humanidade e coletividade, solidariedade e empatia. Ubuntu é a partilha do leite ordenhado entre humanos e não humanos.

O termo Ukama está ligado a uma relação materna e afetiva ao relacionar ‘pessoas que bebem do mesmo leite’, estando, portanto, conectado à irmandade, palavra esta que se conecta ao termo Ubuntu, que significa humanidade, afinidade com o outro ou com o ser através do outro. O termo Ubuntu, por sua vez, conforme Desmond Tutu (2004), “é a essência de ser uma pessoa. Isso significa que somos pessoas através de outras pessoas. Nós não podemos ser totalmente humanos sozinhos. Somos feitos para interdependência, somos feitos para a família”. O autor se refere à família no sentido do Ukama, dessa irmandade onde todos e todas bebem do mesmo leite, não necessariamente a família consanguínea. Ele relaciona Ubuntu com interconectividade, fraternidade, compaixão e abertura do espírito para a existência, de forma que o conceito se afirma como uma teologia que se opõe à violência e que tem no perdão o único caminho para a justiça e o equilíbrio.

Diante do que foi explicado sobre a relação Ubuntu/Ukama, conclui-se que os termos existem coletivamente e possuem uma relação de interdependência entre si, assim como o próprio significado de ambos. A perspectiva Ubuntu-Ukama, portanto, amplifica o sentido de Ser Humano e o modo de relação entre humanos e não-humanos que são permeados pela energia vital que constitui toda existência e que pode nos auxiliar na construção de uma coletividade cujas relações objetivem um futuro de humanidade na qual a política primordial seja a partilha do leite, do alimento e que nos torne cada vez mais humanos.

Referências

KAKOZI, Jean Bosco. Filosofia africana: a luta pela razão e uma cosmovisão para proteger todas as formas de vida. 2018. Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/05/filosofia-africana-a-luta-pela-razao-e-uma-cosmovisao-para-proteger-todas-as-formas-de-vida/. Acesso em 02 jan. 2019.

KASHINDI, Jean Bosco Kakozi. Ubuntu como crítica descolonial aos direitos humanos: uma visão cruzada contra o racismo. Ensaios filosóficos, Vol. XIX, 2019. Trad. Rogério Seixas. Disponível em: https://www.sul21.com.br/ultimas-noticias/geral/2018/05/filosofia-africana-a-luta-pela-razao-e-uma-cosmovisao-para-proteger-todas-as-formas-de-vida/. Acesso em 08 Mai. 2022.

MONTEIRO, Ivan Luiz. Introdução ao pensamento filosófico africano. Curitiba: Editora Intersaberes, 2020 (Série Estudos De Filosofia)

TUTU, Desmond. Receita de Desmond Tutu para a paz – Disponível em https://www.beliefnet.com/Inspiration/2004/04/Desmond-Tutus-Recipe-For-Peace.aspx?p=2. Acesso em 14 jan. 2019