A Esquerda Católica no Brasil: da Ação Popular ao petismo – Segunda parte
Esta semana trazemos a segunda parte do texto A Esquerda Católica no Brasil: da Ação Popular ao petismo, publicada na coluna anterior, um excelente texto do amigo Emmanuel Paulino de Luna, historiador e doutorando em Ciências das Religiões. Considero essa leitura extremamente necessária para entender a atual conjuntura política do nosso país e compreender nela o imprescindível papel da religião. Minha gratidão ao amigo Emmanuel, mais uma vez, por ter aceitar o desafio da dialética sobre política e religião. Segue o texto:
A Ação Popular (AP) foi criada em 1962, tendo Herbert José de Sousa como coordenador nacional e o Padre Henrique Vaz como seu principal ideólogo. Constituindo em sua doutrina as estratégias e as aspirações marxistas revolucionarias a AP tomou opção aberta pelo socialismo, mesclando alguns conceitos cristão que, segundo Beozzo (1994), viriam também no futuro se manifestar na visão de Igreja popular da década de 1970. A AP foi trilhando um caminho cada vez mais revolucionário, o que gerou algumas dissidências, contudo, grande parte da AP que na década de 1970 já denominava-se Ação Popular Marxista Leninista” (APML), resolveu fundir-se com a (re)organização do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), pois ambos grupos possuíam confluências teóricas e táticas que na época estavam alinhadas com o governo chinês. Sendo assim, grande parte da AP ajudou na reestruturação do movimento comunista no Brasil através de umas das legendas que reivindicam o legado marxista-leninista. Os anos que seguiram o Golpe Civil-Militar (1964) foram bastante duros para o PCdoB e os remanentes da AP que já militavam no partido. A ditadura foi responsável por centenas assassinatos, por torturas e censura aos quadros comunistas.
Todavia o contato da Igreja Católica com as teses marxistas permitiram trilhar outros caminhos para além da trajetória da Ação Popular. As ideias da Esquerda Cristã perpassaram o alinhamento maoísta como tática de superar as desigualdades latentes do Brasil e da América Latina. Por meio da experiência própria da igreja latino-americana em meio as nações que exerciam um papel periférico na dinâmica capitalista, surge o que pesquisadores como Sung (2008) e Lowy (2016) denominam de “Cristianismo de Libertação”, um movimento cristão supra-denominacional, mas que por questões culturais e hegemônicas se coloca principalmente no seio da Igreja Católica.
Embora existam movimentos que antecedam a sistematização teológica, como as Comunidades Eclesiais de Base e a própria experiência da Ação Católica Brasileira (ACB), foi a partir da formulação da Teologia da Libertação (TL) que essa corrente ganhou força na igreja latino-americana. No início da década de 1970 o teólogo peruano Gustavo Gutiérrez e o frade Leonardo Boff lançam Teologia de La Liberación e “Jesus Cristo Libertador” respectivamente; essas duas obras inauguram o pensamento da Esquerda Cristã Latino-Americana a partir da realidade regional, ou seja a experiência concreta dos pobres oprimidos que visualizavam numa igreja popular a perspectiva de uma aliança no processo de libertação.
A TL tornou-se o principal suporte do cristianismo de esquerda no Brasil e em toda região, admitindo aspectos da teoria marxista como conceitos de opressor/oprimido, luta de classe e o pobre como sujeito ativo no processo das transformações sociais. Obviamente que, diferente do caminho trilhado pela AP, não há uma absorção total das estruturas marxista-leninistas de organização e muito menos a adoção do ateísmo. Também se deve frisar que há certa distância entre o conceito de proletariado do marxismo e o pobre tutelado pela igreja, porém a TL traz em meio ao seu debate a necessidade das classes subalternas alcançarem a libertação para além das concepções metafisicas que direcionam a felicidade dos oprimidos para uma esperança unicamente transcendental.
Convocando os pobres e demais oprimidos por meio da mensagem de Jesus Cristo (um preso político torturado e morto pelo Estado Romano) para alcançarem sua libertação, a Teologia da Libertação ensina que o pão deve ser divido, assim como foi ensinado pelo filho de Deus. Além disso, a TL prega que a fome, a miséria e a precarização do estado de bem social são pecados sociais que devem ser superados por uma sociedade cristã. As aspirações da TL encontram suas bases em dois acontecimentos da Igreja Católica: o Concílio Vaticano II (1961) e Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-americano (Conferencia de Medellín), ambos são tidos pelos teólogos da libertação como novos prismas para entender a realidade da região a luz da Doutrina da Social da Igreja.
O novo olhar da igreja em relação aos oprimidos da América Latina, especialmente do Brasil, permitiram que os cristãos progressistas se empenhassem na criação de pastorais e frente laicas que possibilitaram a luta popular. Entre as pastorais podemos destacar a Comissão Pastoral da Terra (1975), que em meio a Ditadura Civil-Militar serviu como berço para luta pela terra, pelo direito a água e uma produção saudável no campo, atualizando o discurso judaico-cristão da terra como herança do povo de Deus, outrora oprimido pelo Egito. Esta pastoral em algumas regiões assumiu um papel de movimento social tendo em vista que as Ligas Camponesas haviam sido fechadas com o golpe. É valido lembrar que o próprio Movimento dos Trabalhadores Sem Terras (MST) foi fundado em Cascavel no Paraná na década 1980 com o apoio direto da Comissão Pastoral da Terra (CPT), sendo assim, o MST é filho de uma pastoral católica.
Outra organização que teve forte influência da teologia da libertação foi o Partido dos Trabalhadores (PT), pois os religiosos progressistas bem como as fileiras de leigos foram uma das bases iniciais junto com o movimento sindical (especialmente do ABC paulista), intelectuais e artistas que se propuseram a criar um partido de esquerda alicerçado nos valores democráticos e alinhados aos ideais de justiça social, tanto na cidade como no campo, propondo tais mudanças por meio da democracia vigente. Segundo o ex-presidente Lula:
“O PT não existiria sem as Comunidades Eclesiais de Base; o PT não existiria se não fosse a Teologia da Libertação. Eu que viajei o Brasil inteiro para construir esse partido, eu sei o valor de um padre progressista numa cidade pequena. Quando a polícia fechava os sindicatos era a Igreja que abria as portas pra gente” (LULA, 2020).
Não é a primeira vez que o ex-presidente faz menção a importância da Esquerda Católica para a existência do PT, e muito provavelmente não será a última, pois como foi exposto nesse breve artigo dividido em duas partes, o surgimento da Esquerda Católica não foi um processo rápido, temporal, muito menos superficial. Como o pesquisador Barbosa (2007) afirma, a atuação dos cristãos de esquerda militantes do PT foi forjada em um longo processo histórico, passando pelos movimentos populares, sindicais e até de atuação partidária; e pela magnitude do partido é possível identificar várias tendências cristãs que transcendem obviamente o próprio catolicismo. Todavia, a Esquerda Católica assim como a Esquerda Cristã de forma geral, pode ser questionada, debatida e contrariada, mas jamais tida como inexistente ou insignificante na história política do Brasil.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Imerson Alves. A Esquerda Católica na formação do PT. 2007. 167 f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais de Marília, Universidade Estadual Paulista, Marília, 2007.
LÖWY, Michael. O que é Cristianismo de Libertação: religião e política na América Latina. Expressão Popular: São Paulo, 2016.
SUNG, Jung Mo. Cristianismo de Libertação: Espiritualidade e luta social. São Paulo: Paulus, 2008.
LULA, Luiz Inácio. O PT não existiria se não fosse a Teologia da Libertação”, revela Lula. 2020. Disponível em <http://frissononline.com.br/religiao/151780/o_pt_nao_existiria_se_nao_fosse_a_teologia_da_libertacao_revela_lula> Acesso em 04 de Abril de 2021.