A culpa é do mordomo – brevíssimas anotações sobre os efeitos políticos da finada operação Lava Jato
David Soares de Souza –
O ex-juiz Sérgio Moro, também ex-ministro do governo de Jair Bolsonaro, foi considerado suspeito pelo Supremo Tribunal Federal, em decisão de sua Segunda Turma no último dia 23. Em português castiço, Moro é considerado parcial e atuou deliberadamente para condenar o presidente Lula no âmbito da finada operação Lava Jato. Acrescente-se: também não era o juiz natural do caso.
Criada em março de 2014, a operação Lava Jato, de fato, não tinha como seu chefe o responsável pelo órgão acusador, o procurador da República Deltan Dallagnol. Era, na verdade, indevidamente liderada por Sérgio Moro, que chegava a orientar procedimentos e até mesmo indicar testemunhas, como comprova o conjunto dos conteúdos revelados pelos vazamentos conhecidos por “Vazo Jato”, publicados por The Intercept Brasil e pela operação Spoofing, esta com conteúdos periciados pela Polícia Federal.
Já a partir de 2015, Moro e a Lava Jato, tratados como heróis, tornaram-se peças fundamentais na mobilização da opinião e da política nacional, com apoio e cumplicidade praticamente unânimes na imprensa. A chamada “República de Curitiba” era a principal protagonista no contexto chamado de “conjunto da obra”, argumento usado como justificativa para o golpe parlamentar contra a presidenta Dilma.
Para que tenhamos dimensão destes impactos no estado democrático de direito recordemos um fato emblemático: em 22 de setembro de 2016, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre, decidiu por 13 votos contra 1, que a operação Lava Jato não precisaria seguir as regras dos processos comuns e que, diante de problemas inéditos, poderia aplicar soluções inéditas. Ou seja, a Lava Jato e seus agentes estariam acima da lei.
Isto não quer dizer, obviamente, que não havia práticas ilícitas na Petrobrás. Em 1989, o jornalista Ricardo Boeachat venceu o Prêmio Esso de Jornalismo, denunciando corrupção na Petrobrás e BR Distribuidora. Sete anos depois, em outubro de 1996, durante o programa Manhattan Connection, o jornalista Paulo Francis, denunciou desvio de recursos e superfaturamento na mesma Petrobrás, afirmando inclusive a existência de contas na Suíça para recepção destes valores.
É preciso estabelecer no debate público algumas premissas se quisermos analisar os impactos da Lava Jato com a devida seriedade. O primeiro é que não podemos aceitar que crimes sejam cometidos a pretexto de combater crimes. O segundo é reconhecer que a opinião pública brasileira e seus aparatos estatais foram, no mínimo, coniventes com este estado de coisas por um longo período e que, resolveram pautar este assunto a partir de objetivos políticos e econômicos. Por que se demorou tanto tempo para se investigar ou por que só foi investigado a partir de 2014?
Moro e a Lava Jato orgulham-se de ter recuperado R$ 4 bilhões através de 185 acordos de colaboração e 14 acordos de leniência. No entanto, estudo realizado pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (DIEESE), encomendado pela Central Única dos Trabalhadores (CUT) e divulgado no inicio deste mês, indica que a Lava Jato retirou da economia brasileira R$ 172 bilhões em investimentos e acabou com 4.4 milhões de empregos. Aquilo deu nisto.
Os estragos na economia nacional são facilmente verificados pela quase destruição da engenharia brasileira. Para citar apenas um exemplo, um consórcio chinês, composto por três empresas, venceu em dezembro de 2019 o leilão para construção de uma ponte de 12,4 km ligando Salvador a Itaparica, por meio de Parceria Público-Privada no valor de R$ 7.7 bilhões, dos quais o governo baiano entrará com R$ 1.5 bilhões. Tudo isso, sem concorrência de empresas brasileiras.
O contexto de apoio a Lava Jato é determinado após a quarta derrota seguida do PSDB em disputas presidenciais. Estas forças políticas e sociais, que tinham certeza da vitória de Aécio Neves, não queriam arriscar seus interesses diante das escolhas da soberania popular. Se não venceram Dilma em 2014 por que venceriam Lula em 2018?
A Lava Jato era herdeira de um sentimento udenista na sociedade brasileira, cometeu o mesmo erro da verdadeira UDN e esqueceu-se que os aplausos da elite econômica eram para seus resultados, não para seus agentes. Uma coisa era desestabilizar a política a partir de sua criminalização. Com isso, seria possível interferir no jogo democrático. Mas, outra coisa era entrar na disputa política a partir da antipolítica.
Ao planejaram ir além de Curitiba e apresentarem projeto próprio de poder, “atravessaram o Rubicão”. A instabilidade provocada pela Lava Jato foi condição sine qua non para implementação das reformas almejadas pela elite econômica e que estavam explicitadas no programa “Ponte para o Futuro” de Temer e do MDB e que vem sendo aplicado pela política econômica de Bolsonaro.
A Emenda Constitucional 95, a Reforma Trabalhista, a Reforma da Previdência, entre outras ações, não seriam viáveis sem a derrubada de Dilma Rousseff e sem a prisão política de Lula. O fato é que, mesmo com Lula preso e impedido pelo STF de dar declarações, o candidato do PT, Fernando Haddad, chegou a 45% dos votos válidos nas eleições de 2018. Tudo isto com apenas três semanas de campanha e não sendo um nome amplamente conhecido, naquele momento, pelo conjunto do eleitorado.
Embora o conjunto de forças política e sociais que perdeu as eleições de 2014 e que venceu em 2018, possa concordar com os fins da Lava Jato e do bolsonarismo, parece não querer mais arriscar as incertezas de seus meios, sobretudo a partir dos efeitos externos sentidos com o isolamento do país junto à China, União Europeia e até mesmo Estados Unidos após a derrota de Donald Trump.
A Lava Jato e bolsonarismo são fenômenos distintos. Este último não teria alcançado relevância sem o primeiro. Ambos foram úteis à elite econômica, e em dada medida ainda são, mas simbolizam esgarçamento e crise permanente para do sistema político. O governo de extrema-direita viabilizado pela ascensão da Lava Jato optou por enfrentar uma pandemia com negacionismo e, desta forma, já temos mais de 300 mil vidas perdidas. Enquanto o Brasil tem apenas 2.7% da população mundial, neste momento, deté 23% de todas as mortes por Covid 19 no mundo.
Considerando que nosso principal problema no enfrentamento à pandemia é o governo Bolsonaro, podemos afirmar que não apenas milhões de empregos, mas principalmente, centenas de milhares de vidas teriam sido poupadas se o Brasil não estivesse governado pelo presidente que Moro e a Lava Jato ajudaram a eleger. Um ano depois do início da pandemia não tivemos, ao menos por parte do governo federal, uma campanha incentivando o uso de máscaras. Não há economia, apoio mundial ou estabilidade política que suporte o ônus deste verdadeiro genocídio.
Qual a consequência prática? Cabe perguntar: se Sérgio Moro foi considerado suspeito e se o fruto de sua suspeição foi determinante no resultado das eleições presidenciais de 2018, ficaremos governados até o fim deste mandato como se a democracia estivesse incólume e como se milhares de brasileiras e de brasileiros não estivessem perdendo suas vidas todos os dias por conta desta política?
O país que a elite econômica almeja é desindustrializado, exportador de commodities, importador de produtos com valor agregado e refém da especulação financeira. Mesmo vencida a pandemia, esta fórmula não será capaz de gerar empregos e nem expectativas de futuro para grande maioria de nossa população. Já antes da pandemia o Brasil era um país uberizado.
A saída deste dilema está em aberto e será resultado das disputas de agora e das que estão por vir. A elite econômica precisou do lavajatismo e do bolsonarismo para enfraqueceram as liberdades democráticas, reduzirem os direitos sociais e manterem sua taxas de lucro. A depender da força política do campo democrático e popular, os mordomos começarão a receber a culpa.