A atualidade de Maquiavel
Nicolau Maquiavel nasceu em Florença em 1469 e morreu na mesma cidade em 1527. Suas obras evidenciam um sofisticado analista da política. Uma das mais famosas, O Príncipe, escrita em 1513 e publicado em 1532 se tornou um clássico da ciência política. Clássico porque suas análises, concepções e escritos permanecem como referências. Como escreveu o cientista político e professor Francisco Weffort (1937-2021) “suas ideias sobreviveram ao seu próprio tempo e, embora ressonâncias de um passado distante sejam recebidas por nós como parte constitutiva da nossa atualidade” (Os clássicos da política, vol. 1, São Paulo, Ática, 1996).
No entanto, ao longo do tempo suas obras foram não apenas objeto de admiração, mas também de críticas e como tantos outros autores e livros, muito já se ouviu falar mais poucos leram e outros, mesmo sem ter lido, fazem dele um péssimo juízo.
Há também ignorantes como um advogado criminalista que no dia 14 de setembro de 2023, ao defender um dos réus acusado pelos atos golpistas de 8 de janeiro de 2023, deu um vexame (e foi motivo de chacota) ao proferir a frase “os fins justificam os meios”, atribuindo a Maquiavel, autor segundo ele, do livro O Pequeno Príncipe que foi escrita pelo francês Antoine de Saint-Exupéry (publicado em 1943). Dupla ignorância, porque o titulo do livro de Maquiavel é O Príncipe e a frase não consta no livro. Como disse o filósofo e ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro, autor entre outros do livro Maquiavel, a democracia e o Brasil (São Paulo, Estação Liberdade, edições Sesc, 2022) “Ele nunca escreveu isso. Essa frase foi associada a ele pela igreja ao longo do século XVI. Como ele propunha outra ideia de política, houve essa deturpação da sua obra para hostilizá-lo, foi parte de uma estratégia cristã, em geral, na época”. Na realidade, a frase é do poeta romano Ovídio (Públio Ovídio Naso, 43 a.C – 18 d.C) na sua obra Heroidas, sendo habitualmente atribuída (de forma equivocada) a Nicolau Maquiavel.
“Maquiavélico” é um termo associado a ele, muito difundido no senso comum como sinônimo de pessoas cínicas, ardilosas, traiçoeiras, sem escrúpulos, desprovidas de princípios, que confunde a obra com ele. Maquiavel, como mostra Newton Bignotto (Professor de Filosofia da UFMG) foi um republicano: “Durante sua vida Maquiavel nunca deixou de manifestar sua preferência pelo regime republicano” e se refere a “sua posição política e sua dedicação à causa republicana”, uma República que deve ter dois eixos centrais: a liberdade e a igualdade como valores fundamentais (Maquiavel republicano, Editora Loyola, 1991). Nesse sentido, “Maquiavélico”, não era uma característica de Maquiavel e sim dos homens cuja ação ele relatou e procurou explicar e não justificar, apenas descrever e analisar o que testemunhou na política do seu tempo.
Maquiavel foi um pensador original em um contexto histórico (Florença, Itália, Século XVI) em que muitos estados e nações estavam submetidos ao jogo de monarquias absolutistas, governos autoritários aliados à Igreja Católica e um dos grandes méritos dele foi mostrar que o poder político nada tinha de divino, como se justificava, mas de origem mundana, produto da ação dos homens.
Ele separou a política da moral e da religião (“A política tem razões que a moral religiosa desconhece”), analisando o papel político da religião e da igreja católica em particular que detinha amplo poder em seu tempo. Para ele, a ética política é inconciliável com a ética cristã.
O poder nada tem de divino, da mesma forma que não existe poder sem força, que está na origem de todo e qualquer domínio político, presente na gênese da formação e permanência de todas as formas de poder.
Ao afirmar que todo o domínio político está baseado na força e que ela é uma relação entre os homens, fica subjacente que determinada ordem social não é eterna: é passível de modificação pela ação dos homens.
Além do Príncipe, Maquiavel escreveu muitas obras importantes como Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, a arte da guerra e a História de Florença, a peça Mandrágora (uma comédia considerada obra-prima do Renascimento italiano), A vida de Castruccio Castracani (relato biográfico da vida do) condotiero – mercenário que controlava uma milícia – Castruccio Castracani (1281-1328), que viveu e governou Lucca (na Toscana, região no centro da Itália) e Belfagor, o arquidiabo, um conto escrito entre 1518 e 1527 e publicada em 1549.
Maquiavel foi um dos primeiros intelectuais a rejeitar as tradições idealistas aristotélicas e platônicas. O seu interesse é o da prática política concreta e o fez analisando o passado para extrair lições para sua época. Foi um observador arguto das ações dos grandes homens, como eles se conduziram, examinando as causas de suas vitórias e também de suas derrotas.
No Príncipe e Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio são muitas as referências à antiguidade grego-romana usadas como exemplos para iluminar a compreensão do seu tempo. Era grande leitor e conhecedor dos autores clássicos, traduzidos e publicados na Florença do seu tempo (foi também leitor atento de seus conterrâneos como Dante, Boccacio e Petrarca).
Estudar a história como guia para suas reflexões, para analisar as formas de organização e manutenção do poder. Como diz Maria Teresa Sadek (professora de Ciência Política/USP) ele “recupera a trilha inaugurada pelos historiadores antigos: Tácito, Políbio, Tucídedes e Tito Lívio. Seu ponto de partida e chegada é a realidade concreta. A verdade efetiva das coisas é a chave-mestra de sua análise” (A política como ela é, Editora FTD, 1996).
Eis o objeto de suas reflexões e estudos: a análise concreta da realidade concreta, uma forma realista de compreender a política como ela é e não como deveria ser.
Para Maquiavel não há verdades eternas. Ao romper com as concepções idealistas que marcaram o pensamento político que o antecedeu, coloca os homens como sujeitos da história e rejeita às interpretações religiosas. Acreditava na capacidade humana de determinar seu próprio destino.
São muitas suas reflexões sobre como conquistar e manter o poder, presentes no O Príncipe entre elas, que governante pode (e deve se necessário), ser falso, mentir, trapacear. Eles não agem de acordo com suas convicções ou promessas quando não correspondem aos seus interesses. Da mesma forma devem ficar atentos às promessas de outros. Como ele, também podem estar mentindo “das pessoas, pode-se dizer em geral o seguinte: que elas são ingratas, volúveis, simuladoras e ávidas de ganhos”.
Isso não significa afirmar que todos são assim, senão seria a guerra de todos contra todos, como afirmará depois Thomas Hobbes (Leviatã, 1651). O que ele diz é que não se pode e nem se deve agir supondo que todos querem o bem e correspondam às nossas expectativas, daí a necessidade de estar sempre atentos e precavidos contra as manifestações da natureza humana, que para ele, ao contrário do que mais tarde defenderá um dos seus leitores Jean-Jacques Rousseau, é intrinsecamente má e é a mesma ao longo do tempo e que as pessoas são naturalmente egoístas. Ele não acreditava que as pessoas tenham naturalmente à propensão de amar o próximo
Em relação à política, foi um observador arguto do seu tempo. Na condição de segundo secretário da chancelaria na breve experiência republicana de Florença teve a oportunidade de conviver com pessoas como Cesar Bórgia, filho do papa Alexandre VI, e como o pai, cruel e sem escrúpulos e uma de suas inspirações para escrever o príncipe, após o fim da República (1512), quando foi preso e exilado.
Há dois conceitos-chaves no Príncipe, dos quais dependem o sucesso e o insucesso das ações humanas: Virtú e Fortuna. Virtú não se confunde com virtude no sentido cristão, mas da capacidade política do governante de agir no momento adequado, enquanto a fortuna é uma força do imponderável, traduzida por muitos como acaso ou sorte e raramente são coincidentes nos governantes.
E ele se refere a Cesar Bórgia que teve a Fortuna de ser filho do papa e a Virtú para comandar o exército papal, para ele “um modelo para todos os que pela sorte ou pela força chegou ao poder”. Bórgia teve muitas conquistas, com destreza e também com muita crueldade, condição básica para a conquista e manutenção do poder. No entanto, cometeu erros e alguns foram fatais como o de confiar no papa que sucedeu seu pai, de quem era inimigo, Julio II (conhecido depois como “O papa guerreiro”), que o levou ao exílio na Espanha e depois na França, onde morreu em uma batalha a serviço do rei da França em 1507.
Um aspecto presente nas obras de Maquiavel é a relação entre ética e política, que tem gerado controvérsias. Para ele a ética na política é um código de conduta, diferente, por exemplo, da religião. Como diz Bignoto (Maquiavel, 2003, p.37) “A ética tradicional possui um lugar importante na política, na medida em que ela conforma os julgamentos dos homens a respeito dos governantes; mas ela não serve como queriam muitos, de guia universal para sua conduta. A política possui exigências que não podem ser satisfeitas por uma ética voltada à defesa de valores atemporais”.
Maquiavel afirma que para se mantiver no poder os governantes às vezes precisam ser maus, e não apenas ser maus, mas também precisam saber ser quando se tornam necessários. E mais: os que querem ser ou são sempre bons entre os maus, sucumbirá. No entanto, salienta que não se deve governar apenas através da força e da violência e deve evitar ser odiado, especialmente se o governante, por incompetência ou vontade, retirar bens das pessoas: “É mais fácil se esquecer da morte do pai ou da mãe do que esquecer aquele que lhe tomou os bens”.
Em relação ao fato de que o governante deve ser amado ou temido (Capítulo XVII do Príncipe: Da crueldade e da piedade), e se é melhor ser amado que temido, para ele era importante se conciliasse as duas coisas; entretanto, se tiver que escolher, deve-se optar pelo temor, pois “o amor é facilmente desrespeitado pelas pessoas”. Para conquistar e especialmente se manter no poder, o governante não deve ser guiado pela bondade “porque será sua ruína”. Ele deve sempre buscar o apoio de seu povo, precisa procurar meios pelos quais ele se torne dependente e fiel, pois nos momentos de adversidade eles o ajudarão a se manterem no poder.
Maquiavel também se refere à escolha de auxiliares como um aspecto fundamental para a imagem e o desempenho de um governante (Capítulo XXII) e como se deve evitar os aduladores (capítulo XXIII), ouvindo-os apenas quando achar conveniente (até porque se mudar o governante, os aduladores aderem ao outro), devendo usar a prudência para decidir se deve ou não aproveitar os conselhos dados pelos seus auxiliares. A capacidade governar e sua inteligência se expressa também na escolha de seus auxiliares. Quando estes são capazes, eficientes e fiéis, pode-se considerá-lo como um homem sábio. Mas se é insensato e despreparado não pode se valer dos bons conselhos, ou seja, quando a situação é oposta “pode-se sempre fazer dele mau juízo, porque seu primeiro erro terá sido cometido ao escolher os assessores”.
Cercar-se de bajuladores, despreparados, quando não de estúpidos só depõe contra o governante , abala a sua imagem e os projetos presentes (e futuros), especialmente quando são aventureiros e autoritários, sem qualquer experiência política (e não raro conseguem se eleger com mentiras, manipulações, hipocrisias etc., mas normalmente não permanece muito tempo no poder a não ser recorrendo à força das armas ou o uso de um marketing eficiente para continuar enganando os que o apoiam).
Para Maquiavel, um líder deve combinar qualidades humanas com qualidades animais. E cita a raposa e o leão. A raposa é esperta e sabe reconhecer uma armadilha, já o leão é forte e usa a força para ameaçar os outros: ele aconselha que deva se achar o equilíbrio entre a força e a astúcia. O governante deve ser leão e simultaneamente raposa; forte, mas também perspicaz. Nem sempre são coincidentes em um governante.
Um refinado analista de Maquiavel foi Antonio Gramsci e mais especificamente na obra, Maquiavel, a política e o Estado Moderno (Editora Civilização Brasileira, 1989) para ele, no século XX, o papel do príncipe como iniciador e executor da mudança política era o partido político, não um indivíduo, mas o partido, expressando uma vontade coletiva que deveria liderar as transformações sociais, políticas e econômicas que se fizerem necessárias. No caso, um partido popular e revolucionário.
Enfim, o pensamento político de Maquiavel transcende seu tempo, suas obras, em especial o Príncipe, trata de questões perenes, sempre atuais, como a conquista e manutenção do poder político e nesse sentido ainda hoje podem ser úteis como ferramentas intelectuais para analisar o presente. Segundo Jean-Jacques Rousseau, Maquiavel não pretendia dar lições a um príncipe, mas ao fingir fazê-las tinha por objetivo dá-las ao povo, ensinando-os as táticas dos poderosos para mantê-los dominados. Não por acaso, suas obras (e idéias) continuam sendo lidas e discutidas sendo considerado um dos principais filósofos políticos de todos os tempos.