O são João e uma reflexão sobre como morrem as tradições
No mês de junho existem três datas comemorativas que, principalmente no Nordeste, são muito especiais. São elas: Santo Antônio, São João e São Pedro. Pelo prefixo logo ver-se que as comemorações são relacionadas a três santos da igreja católica. Mas as chamadas “Festas Juninas” vão muito além de questões religiosas! Elas são, sobretudo, parte da tradição cultural nordestina. Exatamente por isso, após o término do mês dos três santos, gostaria de trazer uma breve reflexão sobre as tradições.
Quando eu era criança tinha a percepção de que as três festas eram comemoradas com muita pompa e alegria. Era forró em todo canto, além das quadrilhas juninas, das comidas de milho como canjica e pamonha, do milho assado e cozido na brasa da fogueiraetc. Bem, não se pode esquecer que havia uma parte das comemorações que incomodava aos asmáticos e as demais pessoas que sofriam com problemas respiratórios. É o caso das grandes fogueiras! Também havia muitos fogos que semelhantementeincomodavam pelo barulho a muitas pessoas e aos animais. Mas essa relação de incômodo que hoje temos com esses elementos simbólicos do mês junino é recente. Antigamente as pessoas estavam muito mais preocupadas com a tradição do que com a própria saúde, pelo menos essa é a percepção que tenho da minha infância no interior da Paraíba, onde passava as três festas do mês junto à minha família. Aliás, foi lá que aprendi a gostar do forró tradicional, o velho Pé de Serra. Tinha até disco de vinil do Trio Nordestino, uma das grandes referências desse estilo musical à época, juntamente com Luiz Gonzaga, e mais adiante, com o mestre e querido amigo (tive essa honra e esse grande prazer) Dominguinhos.
Mas os tempos mudam, a cultura é dinâmica e não há como fugir disso. O coletivo molda a cultura, a cultura molda o coletivo. Há uma tautologia inevitável. E assim os três santos da igreja católica foram perdendo seu espaço religioso e, por conseguinte, seu espaço popular. A gente não percebe muitas vezes, mas é assim que as tradições mudam e aos poucos vão morrendo em seus formatos originais. E foi assim que a festa virou um espetáculo para os/as artistas midiáticos e a indústria cultural que tomou conta de tudo.
Usando a lógica de Erick Hobsbawm e Terence Ranger (2012), o conceito de tradição está relacionado ao que foi inventado e pode ser reinventado na dinâmica histórica. Para o orientalista Edward Saíd (2000) a tradição inventada é o que parece ser uma verdade, mas se contradiz a esta, sendo baseada em práticas aceitas pelo coletivo que são inculcadas para conformar socialmente através das repetições. Logo, a conclusão óbvia é que as tradições são criadas e recriadas no tempo/espaço. Elas têm um ponto de partida. Começam em algum lugar e são mantidas para que se tornem tradição. Sua manutenção, no entanto, depende de vários fatores. Na sociedade, por exemplo, depende, dentre outras coisas, da política cultural desenvolvida, da atuação da indústria cultural, de movimentos coletivos etc. Ela, como tudo na vida, nasce, cresce e morre. Tem um começo, meio e fim. E entre o começo e o fim, transita de muitas formas e sob várias influências, o que leva a seu hibridismo, fusões e interseções que muitas vezes tem a mão da política de governo, da religião hegemônica, da adesão do coletivo e, hoje em dia, com o advento da modernidade, a mão não tão invisível, mas muito pesada, da chamada indústria cultural.
Para compreender historicamente a questão posta, há registros de que, antes da chegada dos colonizadores, os povos originários da região nordeste comemoravam, nesse período que hoje denominamos de junino, o surgimento de um conjunto de estrelas chamadas de Plêiades, que são sete estrelas da constelação de Touro. As comemorações eram regadas com cantos de agradecimentos, comidas, rituais de cura etc. Eram as chamadas festas de Batí, cuja tradução no idioma local significava “estrela”. Com a invasão portuguesa a terra de Pindorama, nomeada posteriormente de ilha de vera cruz, vieram às tentativas de apagamentos culturais, o epistemicídio através da tentativa de sobrepor a cultura europeia a dos povos indígenas e, no caso de não insucesso nessas tentativas, ocorre a fusão, a apropriação, a incorporação ou o hibridismo cultural, quando antigos hábitos ou costumes são transformados e dão origem a novos elementos. E assim as sociedades vão se transformando e se adequando em uma nova conformação cultural.
A música cantada pelos Três do Nordeste, composta por João Dantas / Roberto Morais, traz a seguinte letra: “São João tadiferente (tá melhor!) / Tá no clima da gente (bom só só!) / Não é como antigamente (tá melhor!) / No puxado do Fóle (tem suór!)”. A letra da música mostra a realidade das mudanças dentro da dinâmica cultural. Talvez, naquela época, para uns estivesse melhor, para outros mais conservadores e tradicionalistas, talvezestivesse pior. Ou seja, há uma relatividade na perspectiva da tradição.
Trazendo a música para os dias de hoje, na perspectiva de uma pessoa apaixonada por forró pé de serra, acho que a letrapoderia ser atualizada e cantada que o são João tá diferente, tá pior… O fato é que o São João tá diferente e essa é a tradição das tradições: a mudança, pois, como diz o filósofo Heráclito de Éfeso, a única coisa permanente é a mudança.
Referencias:
SAID, Edward. Invention, Memory, and Place. Critical Inquiry,Vol. 26, No. 2 (Winter, 2000), Disponível em:http://www.jstor.org/pss/1344120.
HOBSBAWN, Eric. J.; RANGER, T. A invenção das tradições. Rio de Janeiro: Ed. Paz e terra, 2012.