Caso Vinícius Júnior: racismo, colonialismo e democracia racial no Brasil
Negros (soma de pretos e pardos) são maioria no país: representam 56,1% da população de acordo com o IBGE (2021). São também a maior fatia no bolo dos desocupados segundo pesquisa divulgada no último dia 18. “No recorte por cor ou raça, o IBGE verificou que a taxa de desocupação, no primeiro trimestre deste ano, era de 11,3% entre os que se autodeclaravam pretos, 10,1% entre os pardos e 6,8% entre os brancos (Agência Brasil, 2023). Na contramão, negros ocupam apenas 6,3% dos cargos de gerência em 23 grandes empresas no país. Esse percentual cai para 4,9% nos conselhos administrativos; entre os cargos executivos, o número é ainda menor: 4,7% (Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, 2020).
Os números não são coincidência. O cenário reproduz a essência de um país que não elaborou seu passado e permanece reproduzindo mentalidade e comportamentos racistas nas empresas, na política, na economia, na escola, nas relações humanas. É o chamado racismo estrutural, que naturaliza práticas cotidianas de hierarquização de valor a partir da cor da pele e/ou textura do cabelo dos indivíduos, por exemplo, criando uma lógica perversa de submissão escancarada na tragédia brasileira de todos os dias. É dos negros os menores salários, grau de escolaridade e acesso à saúde. Eles também morrem mais cedo, superlotam prisões e são maioria (70%) entre os que estão abaixo das linhas de pobreza (IBGE, 2020). Tamanha desigualdade só contribui com a marginalização dessa população, leva à cultura da morte e do encarceramento e a um nova forma de escravidão.
Esse debate no Brasil não é novo. Recentemente, em 2021, o Supremo Tribunal Federal equiparou o crime de injúria racial ao racismo e o tornou imprescritível para punir, mais duramente, os racistas. O aprimoramento da legislação é um passo importante na luta contra a violação de direitos; é também uma resposta formal ao pensamento atrasado e autoritário, escravagista e colonialista que permanece, que não passa porque generosamente alimentado pela política de ódio que avançou nos últimos anos a partir da ascensão do bolsonarismo. Todavia, se essa legislação não tem caráter pedagógico, se não pune com rigor criminosos racistas, seus efeitos são nulos. E há um grande obstáculo no caminho do progresso: nosso sistema judiciário. O Perfil Sociodemográfico dos Magistrados – 2018, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mostra que “a magistratura brasileira é majoritariamente formada por homens, brancos, católicos, casados e com filhos”. O resultado desse racismo institucionalizado é também a reprodução de um discurso e de uma prática colonialista, branqueada, que opera na desigualdade e na hierarquização entre as pessoas (CASARA, 2019).
O problema do racismo, contudo, não está circunscrito ao Brasil, mas presente em outros territórios e povos colonizados ou colonizadores, o que nos leva à compreensão de que racismo e colonialismo andam juntos, estão imbricados. “O colonialismo destruiu culturas, subordinou, explorou, massacrou e assassinou fisicamente e/ou psicologicamente povos inteiros, fundando a colonialidade do poder (QUIJANO, 2005; GROSFOGUEL, 2018; MALDONADO-TORRES, 2018). Os ataques sofridos pelo jogador Vinícius Júnior no Campeonato Espanhol há uma semana são mostra disso. O jovem negro retinto, de 22 anos, destaque no futebol europeu incomodou. Para racistas, a riqueza, o poder são vistos como privilégios “naturais” dos brancos. Medidas foram tomadas contra os que o apunhalaram: alguns poucos presos (e já soltos) por terem simulado o enforcamento do atleta; o cartão vermelho recebido por Vinícios Júnior, anulado; um árbitro de vídeo demitido e uma declaração tardia do presidente do Real Madrid, Florentino Pérez: “não toleramos mais incidentes racistas”, disse ele. A desculpa deixa escapar a minimização de crimes que se arrastam há dois anos segundo reportagem da Folha da última quarta-feira, 24: “Desde 2021 ,Vinicius sofre ataques racistas de torcidas adversárias e até mesmo da imprensa espanhola.” Não é algo novo, nem velado, mas vem servindo para levantar um debate que é urgente: no mundo civilizado, incluindo o da bola, não é possível tolerar a barbárie.
Mais sobre o colonialismo
O colonialismo traz a ideia de dominação e subalternidade, reforçando preconceitos a partir de uma compreensão equivocada da relação entre os sujeitos seja por questões de cor de pele, etnia, gênero etc. Quijano trata, inclusive, dessa questão como condição precípua para a consolidação do capital e de um sistema neoliberal que se fundamenta na divisão e em uma racionalidade que objetifica pessoas e as coloca nas prateleiras das coisas negociáveis. “Essa racionalidade colonizou o Estado, as instituições, as pessoas e inclusive o Direito, fazendo, por exemplo, com que as garantias fundamentais passassem a ser percebidas como obstáculos à eficiência do Estado ou do mercado (CASARA, 2019). Doutora em sociologia pela UnB, especialista em gênero e raça, Bruna Cristina Jaquetto Pereira, reforça: “a ideia de que existiam raças diferentes e com capacidades distintas, como moralidade, beleza e intelecto (…) se consolida com o colonialismo, quando os povos europeus atacaram e escravizaram populações nativas em suas navegações por outros continentes”.
Em outras palavras: o racismo é uma construção social. Mas se foi construído, pode e deve ser desconstruído. Nos ensina Lelia Gonzales, antropóloga que inaugura estudos sobre cultura negra no Brasil, que, para isso, é preciso decolonizar, no sentido de se emancipar mesmo, e desmontar essa ideia de subalternidade e de dominação, ou seja, de hierarquia racial para que haja democracia racial. Não há uma fórmula exata ou perfeita, até porque há racismos de vários tipos, se manifestando, diariamente, de diferentes maneiras. No Brasil, por suas características, o caminho para mudar esse quadro assombroso de demonização do outro passa pelo uso dos instrumentos do Estado no combate à discriminação racial e pela implementação de políticas sociais que promovam equidade, que respeitem a diversidade étnica, racial, de gênero etc. Além disso, é preciso que essas pautas sejam abraçadas também pela sociedade porque não existe mudança, conquistas e progresso sem luta social. Se o racismo segrega e mata, as pessoas precisam entender e absorver a ideia precisamente resumida em uma frase da filósofa norte-americana Angela Davis: “numa sociedade racista não basta não ser racista, é preciso ser antirracista”.
Imagem: PABLO MORANO/REUTERS