Terror do comunismo: a narrativa para o golpismo na história do Brasil
Por Lucas Neiva*
A vitória eleitoral do candidato Gustavo Petro para a presidência da Colômbia trouxe uma resposta quase imediata da família Bolsonaro. O deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) se prontificou a divulgar em seu Twitter um mapa onde todos os países com governos progressistas na América do Sul, e mais a Venezuela, são cobertos com o símbolo da foice e martelo, a tradicional bandeira do comunismo. “A responsabilidade do eleitor brasileiro só aumenta”, declarou.
Poucos dias depois, a deputada Carla Zambelli (PL-SP) se juntou no esforço de retratar uma suposta ameaça comunista no Brasil. Postou um mapa semelhante ao de Eduardo Bolsonaro, mas pintando os vizinhos de vermelho. E desta vez, de todos eles saía uma seta apontando para o Brasil, pintado de azul. “Só para lembrar”, escreveu.
O uso da narrativa de um terror comunista que tenta dominar a América do Sul não é novo, mas foi abandonado durante décadas. Desde o fim da Guerra Fria, em 1991, a ideia de comunismo foi em grande parte abandonada pelos próprios partidos de esquerda no Brasil e no mundo, que em sua maioria renovaram suas doutrinas para abraçar propostas e ideias mais recentes.
O retorno do temor ao redor do comunismo é um fenômeno recente, levantado em grande parte por Jair Bolsonaro, que já adotava esse discurso desde o período em que era deputado. Hoje, essa narrativa preocupa especialistas como o historiador Daniel Pradera e o cientista político André Pereira César. Os dois especialistas alertam que, ao longo da história do Brasil, essa narrativa sempre foi adotada para fins antidemocráticos.
Em 2022, esse discurso cria novos riscos, vindos de uma nova forma.
O historiador Daniel Pradera conta que o discurso anticomunista demorou para chegar no Brasil. “Até a década de 1920, a esquerda brasileira era predominantemente anarquista. O anticomunismo até então era uma discussão para um assunto distante, sobre algo que estava ainda acontecendo na Rússia e que não tinha muita relação com a política brasileira”. O Brasil teve seu primeiro partido comunista registrado apenas em 1922, com o surgimento do PCB: antecessor dos atuais PCdoB e Cidadania.
A situação começou a mudar apenas em 1935, durante os primeiros anos da ditadura de Getúlio Vargas. Setores das Forças Armadas tentaram, em conjunto com o PCB, se levantar contra o ditador e tomar o poder no episódio que ficou conhecido como Intentona Comunista. “A intentona foi fundamental porque permitiu com que o regime tivesse um inimigo”, aponta o historiador.
A tentativa de golpe de Estado por parte de comunistas, somada a uma maior consolidação do PCB, deixou tanto Getúlio Vargas quanto seus aliados próximos em alerta, abraçando a narrativa anticomunista para fortalecer seu regime. “É nesse período que surgem inclusive mitos sobre a atividade dos comunistas, como a história de que os revoltosos da intentona mataram soldados que estavam dormindo. Tivemos muita propaganda voltada para a ideia de terror comunista, com os mesmos jargões que conhecemos hoje como o clássico ‘comunista come criancinha’”.
Primeiro golpe
Em 1937, o governo de Getúlio Vargas se aproximava de seu possível fim diante das eleições marcadas para janeiro de 1938. Seus aliados, em especial nas Forças Armadas, precisavam de um plano para garantir a manutenção do governo. A solução foi se aproveitar do temor do comunismo, e utilizar esse medo comum como justificativa para um novo golpe de Estado.
Para isso, foi forjado o Plano Cohen: um documento, redigido por um capitão do Exército, que criava provas de um plano nacional organizado por comunistas para se apropriar do poder. “Quando Vargas viu o documento, ele usou isso para implementar o Estado Novo, sua nova ditadura. Nela, retorna a temática do terror comunista para justificar o autoritarismo”, conta Pradera.
No novo regime, a censura estatal à imprensa era legalizada, bem como a repressão a militantes do partido comunista. A propaganda tanto contra o comunismo quanto contra os demais inimigos do governo se intensificou e se institucionalizou com o surgimento do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
A situação mudou apenas em 1946, quando Vargas foi deposto por oficiais das forças armadas que retornaram da campanha na Segunda Guerra Mundial: conflito onde o Brasil lutou ao mesmo lado da socialista União Soviética, e Vargas se aliou ao líder comunista Luís Carlos Prestes.
Era militar
A morte de Getúlio Vargas em 1953 não deu fim ao temor entre militares e setores conservadores da sociedade de um perigo comunista espreitando o poder. O avanço da Guerra Fria deu ao assunto uma evidência ainda maior, e a militância da União Democrática Nacional (UDN), principal partido de direita daquele período, não poupava esforços em deixar claro o desprezo pelo comunismo.
Na década de 1960, o terror comunista voltou aos holofotes quando o até então presidente Jânio Quadros condecorou o guerrilheiro Che Guevara com a medalha da Ordem do Cruzeiro do Sul. “A ala conservadora da sociedade se enfureceu. E, para piorar, ele foi eleito por uma coligação com a UDN, que ficou transtornada com a situação”, aponta Pradera.
Com a renúncia de Jânio Quadros e a subida de João Goulart, do PTB (principal partido de esquerda daquele período), a narrativa anticomunista voltou a ganhar força. Em 1964, serviu novamente como desculpa para um golpe de Estado. “O golpe militar sempre foi nutrido e justificado pelo anticomunismo, ainda que não fosse essa a verdadeira intenção”.
Novamente, a repressão ao comunismo foi não apenas legalizada como estabelecida como prioridade: assim como no Estado Novo, veículos de imprensa voltaram a sofrer censura. Agências de segurança empenharam esforços na captura e execução de qualquer um considerado por elas como comunista. A ilha de Cuba, onde há um regime socialista até os dias de hoje, passou a ser retratada como um inimigo público pelo governo militar.
1989- primeiro uso eleitoral
O final da década de 1980 marcou tanto o colapso dos regimes militares na América do Sul quanto dos regimes socialistas no leste europeu. No Brasil, o país já caminhava para a sua segunda eleição presidencial em um novo regime democrático. No segundo turno, competia o candidato Luiz Inácio Lula da Silva, pelo PT, contra Fernando Collor (PTB-AL), pelo PRN (atual Agir).
O cientista político André Pereira César conta que Collor abraçou o anticomunismo, mas desta vez buscando retratar seu adversário como defensor de uma ideia falida. “A eleição aconteceu justamente enquanto era exibida a queda do Muro de Berlim na televisão, com os regimes satélites da União Soviética caindo um após o outro. Collor aproveitou isso na campanha para dizer que Lula representava o atraso, que era o comunismo, que ele queria instaurar um regime que deu errado no mundo inteiro”.
A estratégia funcionou, e Collor foi eleito com 53% dos votos. Passadas as eleições, a narrativa do anticomunismo já não tinha mais força: a União Soviética caiu apenas dois anos depois, dando lugar a uma ordem mundial onde não havia mais um concorrente para o capitalismo.
Era Bolsonaro
André César explica que, após décadas de construção de uma narrativa pública no Brasil retratando o comunismo como um mal a ser evitado a qualquer custo, era uma questão de tempo para que algum ator político tentasse se aproveitar dessa memória coletiva para atacar seus rivais. Em 2018, o candidato Jair Bolsonaro obteve sucesso em fazer isso contra seu rival Fernando Haddad, do PT.
Nessa retomada do terror comunista, a narrativa já foi a associação do comunismo à corrupção. “Durante os três mandatos e meio do PT, a população se acostumou a ver os noticiários falando dos escândalos do Mensalão e da Operação Lava-Jato. Para o eleitor mais conservador, era fácil vender a ideia de que o governo PT era comunista e que a corrupção era praticada por conta do comunismo”, conta.
Com isso, Bolsonaro conseguiu atrair à sua pauta anticomunista, que o fez ganhar popularidade nos anos em que foi deputado federal, a pauta anticorrupção, um dos assuntos de maior peso na corrida eleitoral de 2018. “A partir daqui, o terror comunista passa a ser uma coisa puramente ideológica. Para o bolsonarista, o comunismo é uma representação do mal que precisa ser eliminado”, retrata o cientista.
O especialista acrescenta que, ao contrário dos seus antecessores, que usaram do anticomunismo como justificativa para suas ações, Bolsonaro e seus aliados utilizam o anticomunismo como ferramenta de mobilização. “Os eleitores replicam esse discurso como robôs. Eles estão convencidos de que enfrentar o comunismo é quase como salvar a civilização brasileira e a civilização continental”.
André César critica o discurso anticomunista, por entender se tratar de uma ideologia que não possui mais defensores de peso na política brasileira, e não haver mais o temor pelo comunismo ao redor do mundo. “As coisas ao redor do mundo mudaram, mas aqui continua um discurso do século XX. É uma discussão atrasada e que inclusive interdita os problemas centrais, as grandes questões que precisamos debater e enfrentar”.
Para o presidente, porém, a narrativa do terror comunista pode trazer recompensas nas eleições de 2022. “Bolsonaro convenceu o eleitor de que todo corrupto é comunista. Já que não existem os tais comunistas em seu governo, então não há corrupção. Agora ele busca convencer o eleitor que eles precisam manter ele lá, porque se os ditos comunistas ganharem, a corrupção volta”.
*Publicada originalmente em Congresso em Foco