O desmonte da ciência (e do país) no governo Bolsonaro

Entre a herança maldita do governo Bolsonaro no processo de desmonte do país, estão os parcos investimentos em ciência e tecnologia. No dia 5 de outubro de 2022, dezenas de entidades que compõem a ICTP.Br (Iniciativa para a Ciência e Tecnologia no Parlamento) – um movimento organizado da comunidade brasileira de ciência e tecnologia para atuação permanente junto aos parlamentares no Congresso Nacional e, também, em Assembleias Legislativas e Câmaras Municipais, em prol do desenvolvimento científico e tecnológico do país – divulgou uma nota pública endossando as manifestações da Andifes (Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais) e Conif (Conselho Nacional das Instituições da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica) denunciando à sociedade brasileira o que considerou como mais um atentado à Ciência e Educação no país, com o anúncio de mais um corte de recursos, que tem sido sistemático desde o início do governo Bolsonaro. Segundo a nota “a comunidade acadêmica e entidades representativas da comunidade cientifica foram novamente surpreendidas por mais uma medida do governo federal que segue na linha da destruição das instituições produtoras do conhecimento brasileiro e desenvolvimento científico e tecnológico”.

A referência da nota é o Decreto 11.216 de 5 de outubro de 2022 que altera o Decreto nº 10.961, de 11/02/2022, com corte de mais R$ 582 milhões do orçamento de 2022 em recursos destinados às universidades públicas federais, institutos federais, Cefets e Colégio Pedro II. Com esse novo corte, chegou a um total de R$ 1,1 bilhão só em 2022 e a nota complementa afirmando que esses cortes “atentam contra a educação, ciência, tecnologia e inovação e afetam gravemente o desenvolvimento social e econômico do país”.

Uma matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo no dia 8 de outubro de 2021 informa que O Ministério da Economia diminuiu em 87% o encaminhamento de verbas para o setor de ciência e tecnologia em 2021, uma queda foi de R$ 690 milhões para R$ 89,8 milhões.
Em relação aos anos anteriores, um levantamento feito pela economista Fernanda De Negri pesquisadora do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA)- disponibilizado pelo jornalista André Shalders, do jornal O Estado de S.Paulo revelou que o governo federal investiu em 2020 em Ciência e Tecnologia menos recursos do que em 2009, o que demonstra o desprezo (fruto da ignorância) em relação à ciência e à pesquisa (e não apenas, pois os cortes foram extensivos a quase todos os ministérios).

Atingido pela pandemia em 2020, com um dos maiores índices de infectados e mortes do mundo, o governo brasileiro, ao contrário dos outros países, em vez de aumentar, diminuiu os recursos para pesquisas, testes, vacinas etc. (o que tinha sua lógica, em meio ao negacionismo em relação à pandemia). As consequências foram, entre outras coisas, milhares de mortes e milhões de infectados, além da paralisação de pesquisas, como, entre outros exemplos, em relação aos recursos para a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CNPq), centros importantes de pesquisas como o Instituto de Matemática Pura e Aplicada, o Centro de Pesquisa em Energia e Materiais, a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (EMBRAPA), a Empresa Brasileira de Pesquisa e Inovação Industrial e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), Institutos Federais e Universidades Públicas.

Em relação ao INPE (com sede em São José dos Campos /SP e que completou 60 anos no dia 3 de agosto de 2021), uma matéria publicada na revista Pesquisa FAPESP, em agosto de 2020 (n.306, pgs. 33 a 41) por Yuri Vasconcelos, intitulada INPE sob pressão, entrevistando servidores, pesquisadores do órgão, o diretor e três de seus antecessores, além do uso de dados fornecidos pelo órgão e pelo Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações (de onde provém a quase totalidade dos seus recursos) mostra como o processo de desmanche atinge uma “das mais relevantes instituições científicas do país”. Uma matéria publicada no (O) Eco por Cristiane Prizibiski no dia 20 de outubro de 2021, afirma que o INPE recebeu em 2021 o menor orçamento de toda sua história “Foram R$ 77 milhões previstos na Lei Orçamentária Anual, uma queda de 46% % em relação a 2018, último ano antes da gestão Bolsonaro, quando o Instituto recebeu R$ 142,7 milhões, valor já menor do que anos anteriores. O orçamento oficial foi suplementado em cerca de R$ 3 milhões em meados de 2021.

Em outro artigo ela informa que a falta de verbas iria forçar o INPE a descontinuar o programa de monitoramento do desmatamento no Cerrado, a equipe do programa já tinha sido desmobilizada e os dados oficiais da destruição no bioma devem ser gerados somente até abril de 2022 e que essa informação vem a público menos de uma semana depois de o Instituto ter revelado que o desmatamento no Cerrado entre 2020 e 2021 atingiu o maior índice desde 2015, chegando a 8.531 km², uma alta de 8% em relação ao período anterior.

Uma matéria publicada no Brasil Amazônia Agora no dia 18 de fevereiro de 2022 informa que mesmo com recomposição para 2022, o orçamento para o INPE caiu 32% em relação a 2020. O INPE é referência no país em estudos e pesquisas relevantes em astrofísica, clima espacial, meteorologia e mudanças climáticas, além de um conceituado programa de pós-graduação (são sete cursos: Astrofísica, Engenharia e Tecnologias Espaciais, Geofísica Espacial, Computação Aplicada, Meteorologia, Sensoriamento Remoto e Ciência do Sistema Terrestre), tem importantes programas de previsão meteorológica por meio de satélites e de monitoramento de queimadas e emissão de alertas climáticos.

Destaca-se ainda o fato de ter presença em sete estados (Pará, Mato Grosso, Rio Grande do Norte, Ceará, Maranhão, São Paulo e Rio Grande do Sul, sendo eles a Coordenação Espacial Amazônia (Belém-PA), Estação de Recepção de Satélites no Centro de Lançamento de Alcântara (Alcântara-MA), Coordenação Espacial Nordeste (Natal-RN), Coordenação Espacial Centro-Oeste (Cuiabá-MT), Coordenação Espacial Sul (Santa Maria-RS), além de observatórios em Atibaia (SP), São Martinho da Serra (RS), São Luis (MA) e Eusébio (CE).

Como diz a matéria da revista FAPESP, naquele momento o Instituto enfrentava um dos momentos mais delicados de sua história e tinha pela frente enormes desafios “para dar continuidade aos projetos em andamento e conseguir executar novos empreendimentos tecnológicos e científicos”. Em 2021, o aporte financeiro foi de R$ 75,8 milhões (previstos pela Lei Orçamentária Anual – LOA), mas representa menos da metade dos recursos de 2020 e em torno de 15% de 2010.

Desde 2010, a redução de recursos para Ciência e Tecnologia foi gradativa, de 478,6 diminuindo para 283,9 milhões em 2013, 232,8 milhões em 2016, 171 milhões em 2020 e em 2021 diminuiu para 75,8 milhões (Na matéria da revista Pesquisa FAPESP, na página 35, é apresentado um gráfico com dados por ano, de 2006 a 2021 e consta a informação de que os dados foram corrigidos pelo IGP-M/FGV para permitir uma melhor comparação – Fontes: INPE e Gilberto Câmara).

Foi do INPE os dados publicados em 2019, com grande repercussão, nacional e internacional, sobre desmatamento na Amazônia, informando a perda de 10,1 quilômetros quadrados de mata nativa, a maior taxa desde 2008. A repercussão não foram apenas pelos dados divulgados como pela reação do presidente da República que, não apresentando qualquer prova em contrário, acusou a instituição de mentir sobre os dados e demitiu o diretor, substituído por um militar.
No caso específico dos recursos para a ciência, enquanto outros países aumentaram recursos para enfrentar a pandemia da covid-19, no Brasil, houve uma diminuição do aporte de recursos, necessários para pesquisas, compras de vacinas, testes etc.

Um dos problemas em relação à área de ciência e tecnologia foi a retenção e bloqueio de parte do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT). Em Sessão Deliberativa do Congresso Nacional (Senado e Câmara dos Deputados) realizada no dia 17 de março de 2021 foi apreciado o veto n. 2 de 2021 de um Projeto de Lei Complementar que dispunha sobre a vedação, limitação de empenho e a movimentação financeira das despesas relativas à inovação e ao desenvolvimento científico e tecnológico. Tratava-se da modificação da natureza e as fontes de receitas do Fundo, incluindo programas desenvolvidos por organizações sociais entre as instituições que podem acessar os recursos do FNDCT. Com 457 votos foi derrubado o veto do presidente da República que tratava do dispositivo que impedia o governo federal de alocar os recursos na reserva de contingência (e assim inviabilizar recursos do FNDCT no financiamento de programas e projetos prioritários de desenvolvimento científico e tecnológico).

O fato é que o investimento em Ciência e Tecnologia foi diminuindo a partir de 2013(RS 27,3 bilhões) chegando a R$17,2 bilhões em 2020. Considerados os anos de 2013 a 2021 houve um recuo em mais de um terço. É importante destacar que os cortes não foram iguais para todos os ministérios, mas o Ministério da Ciência e Tecnologia e Inovações (MCTI) foi uma das pastas que concentraram os maiores cortes.

O Ministério é responsável pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), que junto com a Capes e FNDCT são responsáveis pelo financiamento de pesquisas no país (A Capes, é uma agência de fomento à pesquisa, vinculada ao Ministério da Educação) e que já dispunham de 40% de toda a verba para a ciência, diminui em 2021 para 28% dispondo do mesmo valor do começo dos anos 2000, quando a quantidade de pesquisadores no Brasil era bem menor.

O impacto negativo é evidente do ponto de vista não só de recursos para pesquisas como para formação de cientistas e na capacidade de produção de conhecimento (presente e futuro). Uma evidência do descaso com pesquisas, Ciência e Tecnologia, foi o fato de que em abril de 2021, ao sancionar o Orçamento do ano, o presidente da República desrespeitou uma lei complementar aprovada semanas antes pelo Congresso e bloqueou R$ 5 bilhões do FNDCT.

Outra expressão do descaso foi a suspensão da importação de insumos para a produção de medicamentos utilizados em diagnóstico e tratamento de câncer. A justificativa foi a de que não havia recursos orçamentários. Segundo o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares (IPEN), uma vítima da falta de recursos, as consequências foram danosas não apenas na área de Ciência e Tecnologia, mas também na saúde, pesquisa, cultura e educação desde o seu início. A matéria sobre a suspensão da produção de remédios está aqui.

Segundo o documento, o órgão importa radioisótopos de empresas da África do Sul, Holanda e Rússia, além de adquirir insumos nacionais para produção de radioisótopos e radiofármacos utilizados no tratamento do câncer. O material é usado entre outras, na radioterapia e exames de diagnóstico por imagem.
Uma matéria publicada no jornal O Estado de S. Paulo no dia 16 de setembro de 2021 por Breno Gomes Bruno destaca que o caso no IPEN ocorre na mesma semana em que o governo criou uma nova estatal dentro do plano de privatização da Eletrobrás, a Empresa Brasileira de Participações em Energia Nuclear e Binacional, a ENBpar e que, segundo o Ministério da Economia, serão destinados R$ 4 bilhões do Orçamento de 2021.

O presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN), George Coura Filho, entrevistado para a matéria “avalia que entre 1,5 milhão e 2 milhões de pessoas serão prejudicadas com a falta de distribuição dos radiofármacos do IPEN, e não apenas os doentes de câncer”, e informa ainda que “o IPEN fabrica 25 diferentes radiofármacos, ou 85% do fornecimento nacional. Para manter a produção, o órgão aguarda a aprovação pelo Congresso Nacional de um Projeto de Lei que adicionaria R$ 34,6 milhões ao seu orçamento. Outros R$ 55,1 milhões estão sendo buscados pelo MCTIC para completar os R$ 89,7 milhões que o instituto precisa para produzir os radiofármacos até dezembro deste ano”.

Em relação à paralisia das atividades e serviços de medicina nuclear o fato é que afetará “não apenas a fabricação de remédios contra o câncer, mas, também, recursos para pesquisas, estudos e diagnósticos de outras doenças”, num cenário de enfrentamento de uma das mais graves crises de saúde pública do país, com a pandemia e suas consequências.

Como afirma a matéria no jornal O Estado de S. Paulo (O desmanche da Ciência) “No campo econômico, a asfixia orçamentária da ciência acarreta perda de competitividade do País, num momento em que as disputas no âmbito de um comércio globalizado são cada vez mais acirradas. No campo político, o menosprezo pela produção do conhecimento dificulta a formação de uma política científica capaz de subsidiar um projeto de futuro para o País, ao mesmo tempo em que o torna um mero figurante nas discussões nas relações internacionais e na geopolítica mundial (21/09/2021). Esse menosprezo (a ciência, educação, cultura etc.) e os cortes de recursos continuaram em 2022. Segundo matéria publicada no Fórum em 25/07/2022 por Marcelo Hailer o orçamento secreto de Bolsonaro tirou R$ 3,6 bi do MEC e dezenas de programas, entre eles o de alfabetização, foram afetados pela falta de verba.

Se no campo econômico menos recursos leva a perda de competitividade do País, no campo político, desde o início do atual governo, houve um consistente e sistemático desprezo pela produção do conhecimento, expressa em aportes cada vez menores de recursos em áreas estratégicas, apenas de destruição por parte de um governo que ao longo de quatro anos foi incapaz de compreender a importância da ciência, da cultura, saúde e educação do país.
Com Lula, renasce a esperança de reverter esse quadro, com mais recursos para todas as áreas, com pessoas qualificadas. Será um imenso desafio e trabalho reconstruir o país, depois desse pesadelo, mas o novo governo já mostrou como fez e com a experiência acumulada deve fazer melhor ainda.

 

Foto: reprodução, via Rede Brasil Atual