Fundamentalismos religiosos: política, religião e a nova “guerra santa”

Há tempos observo esse movimento crescente chamado neopentecostalismo e sua maior expressão calcada no fundamentalismo religioso. Inclusive já escrevi anteriormente sobre o que se denominou de narcopentecostalismo. A partir desse movimento fundamentalista religioso é possível compreender um de seus desdobramentos no Brasil que resultou com a eleição de um representante da extrema direita em 2018. Esse mesmo fundamentalismo que elegeu o inominável, hasteou a bandeira de Israel (o país) no frontispício de suas igrejas. Hoje temos, no Brasil, igrejas evangélicas “cristãs” que, além de apiar a violência, a tortura, o preconceito e o etnocídio, também apoiam o sionismo judeu e o próprio judaísmo, uma incongruência aparente que, em verdade, é parte de um projeto político-social de dominação.  Um detalhe: a incongruência principal é que o judaísmo rejeita a crença de jesus como messias.

A religião, a grosso modo, pode ser analisada como um conjunto de crenças e ritos, e pode ser compreendida na sua dimensão coletiva de organização social. O fundamentalismo religioso, no entanto, cujas origens são creditadas as religiões cristãs evangélicas, se desdobra para além das fronteiras religiosas, buscando ocupar espaços ideológicos na política, na ciência, na educação etc., estando intrinsecamente ligado ao fundamentalismo político. Essa expansão, com explícito objetivo de ocupação e demarcação de espaços para dominação, traz consigo severas consequências ao tecido social, tendo em vista que enfraquece a pluralidade, mina a diversidade e o respeito dentro da coletividade.

O fundamentalismo surge no final do Séc. XIX e início do Séc. XX, nos Estados Unidos. Durante a Niagara Bible Conference em 1878, o termo foi utilizado pela primeira vez para se referir aos elementos fundamentais da fé cristã naquela perspectiva, conforme Reyli (1993, p. 305): a)o nascimento virginal de Jesus; b) a ressurreição corpórea dele; c) a inerrância das escrituras; d) a teoria substitucionária da expiação;  e e) a eminente volta de Cristo. Importante dizer que o termo foi se ressignificando com o passar dos anos e, após “a Segunda Guerra Mundial, o fundamentalismo é ressignificado, se internacionaliza e se expande pelo globo acompanhando a expansão do capitalismo estadunidense” (CUNHA, 2022). Nesse aspecto o fundamentalismo começa a sua caça às bruxas, buscando se afirmar, conquistar espaços e adeptos, expandir fronteiras para resgatar o “valores familiares e cristãos, supostamente sequestrados pelo humanismo secular, pela ameaça comunista, pelo feminismo e pelos homossexuais” (CUNHA, 2022).

O fundamentalismo que se apresenta na conferência supra mencionada, ao defender a infalibilidade da bíblia, se afasta da ciência e ergue uma barreira entre a ciência e a fé, portanto, os fundamentalistas se colocaram como adversários dos iluministas que buscavam uma fé racional. Se na idade média a fé justificava os saberes e a filosofia, no iluminismo a ciência justificava a fé. Com o fundamentalismo nega-se a ciência e isola-se a fé como único princípio verdadeiro ao qual se deve seguir. De certa forma, volta-se a idade dos mitos, bem anterior a idade média.

Para compreender melhor, é importante explicar que a grande maioria dos oradores presentes no Niagara Bible Conference de 1878 eram considerados dispensionalistas. Os seguidores dessa doutrina teológica ou sistema interpretativo, se utilizam da interpretação literal da bíblia e creem que existe uma distinção entre Israel (os descendentes do patriarca bíblico Jacó – não o país) e a igreja, estando os cristãos sujeitos a Lei de Moisés. Além disso, acreditam no sionismo cristão, cuja ideologia político-religiosa se posiciona pela defesa do povo de Israel à terra santa.

É a partir daqui que começamos a compreender a conjuntura política que aproxima o fundamentalismo da extrema direita, que tem provocado genocídio e guerras em várias partes do mundo ao longo dos tempos, inclusive em Israel, país do Oriente Médio fundado em 1948. Até então Israel era uma província do império Turco denominada de Palestina. E é aqui que começa a ter força o movimento político denominado de sionismo, que acredita que a Palestina fora ocupada por estranhos e, de tal modo, defende o movimento nacionalista para recriar a nação judaica ancestral e erradicar dela os “estranhos”, os estrangeiros que vivem na terra reivindicada.

A filósofa Marilene Chauí (2006, p. 125) afirma que “Fundamentalismo religioso, atraso, alteridade e exterioridade cristalizaram a nova figura da barbárie e, com ela, o cimento social e político trazido pelo medo”.  Com esse modo de operar na política, as crenças religiosas geraram inimigos que devem ser combatidos, pois trouxeram consigo a violência e a intolerância, além da xenofobia e do racismo. As religiões monoteístas, como é o caso do cristianismo, judaísmo e islamismo, “se imaginam portadoras da verdade eterna e universal, essas religiões excluem o trabalho do conflito e da diferença e produzem a figura do Outro como demônio e herege” (CHAUÍ, 2006, p. 132), criando um espaço maniqueísta que coloca o bem e o mal como morais antagônicas do espaço religioso, onde não há lugar para as diferenças, de tal modo, há uma politização do espaço religioso, no qual se instalou um espaço de disputa entre bem e mal e, a partir disso, elege-se as autoridades políticas que são concebidas, nessa perspectiva, como um missionário orientado pelo próprio deus, um “intérprete da vontade divina” (CHAUÍ, 2006, p. 132). É exatamente nesse aspecto que o fundamentalismo religioso se aproxima e borra as fronteiras do fundamentalismo político, no qual não há espaços para o diálogo, o respeito e a convivência pacífica e dialógica com a diversidade. A teocracia, nessa perspectiva, é logo ali!

Claudio de Oliveira Ribeiro (2013, p. 66) define o termo fundamentalismo como “qualquer corrente, movimento ou atitude, de cunho conservador e integrista, que enfatiza a obediência rigorosa e literal a um conjunto de princípios básicos desprovidos de visão dialógica.  Esse conceito ilustra o que o sociólogo James Davidson Hunter (1991) chamou de “guerra de cultura”, pautada entre sistemas morais antagônicos tidos como inconciliáveis pelos fundamentalistas, o que denota total hostilidade a entendimentos morais distintos como, por exemplo, direitos LGBTQIAP+, direitos das mulheres, feminismos, sexualidade etc. Um debate que, nessa perspectiva, se torna um monólogo político-ideológico.

Todos esses cenários político-religiosos explicitam o quanto o fundamentalismo religioso e político se constrói a partir do medo e do poder, travando guerras a partir do discurso sectário de uma polarização na qual o “bem” faz parte do espaço religioso e o “mal”, do espaço profano. A violência motivada a partir dessa crença pode ocorrer de diversos modos, mas em todas as situações, termina com povos e culturas massacradas, perseguidas, e algumas vezes, exterminadas, como se pode observar hoje no território palestino da Faixa de Gaza, onde Israel não tem poupado a vida nem de crianças inocentes.

Todas essas questões mostram que o Estado deve ser laico e, a partir da laicidade, estabelecer políticas públicas para a coletividade em toda sua plural diversidade, sem privilégios de quaisquer grupos, e pensando sempre na equidade e na inclusão.  E falando em Estado laico, considero uma excrescência a existência de uma bancada da bíblia em um espaço de agentes públicos como o congresso nacional, bem como a existência de símbolos religiosos em espaços públicos nos quais a representação de toda coletividade deve ser assegurada como uma prioridade.

Como se pode perceber, religião, política e sociedade andam de mãos dadas, a questão é qual o caminho a ser trilhado, se o progressista ou o reacionário. Por isso, é importante conhecer a história e analisar a religião, seus aspectos sociais e suas conexões políticas de modo crítico, histórico e filosófico. Todos esses aspectos permitem observar questões acerca do fundamentalismo e sua consequente ameaça à pluralidade e a diversidade para que jamais tenhamos uma teocracia, mas, pelo contrário, fortaleçamos a democracia tão frágil em nosso país, garantindo os direitos constitucionais coletivos e individuais.

 

Referencias:

CHAUÍ, Marilena. Fundamentalismo religioso: a questão do poder teológico-político. En publicacion: Filosofia Política Contemporânea: Controvérsias sobre Civilização, Império e Cidadania. Atilio A. Boron, 1a ed. – Buenos Aires: Conselho Latinoamericano de Ciencias Sociales – CLACSO; São Paulo: Departamento de Ciência Política. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. Abri, 2006.

CUNHA, Magali. Fundamentalismos. Religião e Poder. Março de 2022. Disponível em https://religiaoepoder.org.br/artigo/fundamentalismos/

HUNTER, J. D. Culture wars: the struggle to define America. Nova York: Basic Books, 1991.

REILY, Duncan Alexander. História documental do protestantismo no Brasil. 2 imp. São Paulo: ASTE, 1993

RIBEIRO, Claudio de Oliveira . Um olhar sobre o atual cenário religioso brasileiro: possibilidades e limites para o pluralismo. Estudos de Religião, v. 27, n. 2 • 53-71 • jul.-dez. 2013.