Relacionamento abusivo: sonhos engavetamentos e a violência que ninguém vê
Mônica Lemos –
Conversava sobre negócios com uma colega de outro Estado, ao telefone, quando fui interrompida pela criança pedindo almoço. É intuitivo, impulsivo, enfim. A gente não pede ajuda, em regra. A gente só se despede e vai atender às necessidades domésticas. Todas as vezes que tivermos que escolher entre fechar um negócio e atender a um filho, falo sem medo de errar o palpite, a maioria de nós atende ao filho, ainda que isso nos custe uma perda financeira.
E assim, mais e mais mulheres vão se afastando de suas habilidades profissionais. A pandemia acentuou isso. Com o fechamento das escolas e as aulas on-line ficamos à beira de um ataque de nervos. Se sozinhas, ficamos ainda mais craques no malabarismo, equilibrando um telefonema importante com o tempo de cozimento do feijão e a “tarefinha” de fazer uma pizza com o filho de cinco anos para ele aprender um pouco sobre medidas, texturas e sabores. Lindo de fotografar, até porque a foto não carrega o som dos gritos de histeria que damos de vez em quando.
E equilibra os pratos para não cair. Se somos casadas, em regra, o pai diz: “peça para sua mãe”. É como se os negócios deles sempre fossem mais importantes do que os nossos. Sem perceber nos coloca em uma posição secundária (às vezes, percebendo também).
Muitos sentimentos permeiam nossa mente nessas horas. “Não posso gritar com ele, afinal, o que a criança tem a ver?” “Também não posso deixar que ele olhe a panela no fogão porque vai queimar.” “Estou fazendo mil coisas, mas a criatura não percebe que preciso de colaboração?” O que é diferente de ajuda, ressalte-se! Colaborar é laborar junto. Trabalhar junto. E eles dizem: “você não falou que estava precisando de mim!” Caramba! Precisa?
E lá vamos nós perdendo pouco a pouco possibilidades de ouro. No telefonema lá do início disse: “Fulana, preciso desligar. Hora de colocar o almoço do filho. A gente sabe como é ser a gente!” Depois, passei o dia ruminando essa frase final: “a gente sabe como é ser a gente!”
A empatia de gênero é imediata quando encontramos uma mulher no caminho. Algumas colegas desistiram da profissão durante esse último ano. Isso porque o momento exigia de nós algumas adaptações bem acentuadas. E às vezes, essa adaptação consistia em mudar de ramo. Talentos engavetados. Mais uma conta de saldo negativo deixado pela maior crise sanitária e política vivida pela nossa geração.
Eu não tolero essa expressão “novo normal”. É que não tem como aceitar essa nova condição. Mulheres perdendo mais. Quando não é espaço no mercado de trabalho é na relação abusiva e violenta com dados subnotificados.
Abrindo a pauta da violência, isso daria outra conversa, mas não posso perder a chance de deixar o alerta. As conversas têm tudo a ver. Explico. É que a autonomia financeira proporciona condições de uma mulher romper mais facilmente (se é que tem algo fácil nessa história) com o ciclo de violência. Quero dizer que não tem como falar de empoderamento sem passar pela questão da independência financeira. E sobre essas mulheres que abandonaram suas profissões pela falta de compreensão e apoio de seus companheiros ou do pai de seus filhos, não seria essa também uma faceta da violência?
A gente vai aprendendo que o ciclo da violência começa de forma branda, muito sutil. E vai aumentando e, como um termômetro, vai aquecendo. Pode começar na ida ao restaurante, quando ele puxa a cadeira para você sentar e envolvida como o ato de romantismo nem se deu conta de que ele te colocou para sentar virada para parede, na sua frente, sem a menor chance de perceber quem estava em volta. E quando você se percebe, a desculpa é até plausível: “meu papel é te proteger!” Nossa audição romantizada entra em ação. Que lindo! Mas para e pensa: proteger de que, hein? O monstro do lago Nessi pode entrar no restaurante, é?
Essa “proteção” também aparece quando ele contrata um motorista, por exemplo, somente para “te poupar” de dirigir, mas você nem se deu conta de que era para seguir teus passos. E quando há uns arroubos de grito ou batida na mesa em alguma discussão, sempre foi por culpa dos relacionamentos anteriores e traumas que carrega deles. Pobre homem traumatizado, e você, que nem psicóloga é, se sente no dever de ajudar o “coitadinho.”
Essa falta de iniciativa em colaborar com as tarefas domésticas e a educação dos filhos, coabitem vocês ou não, é uma forma de te vencer no cansaço porque eles apostam todas as fichas no coração maternal da gente. E olha, a culpa não é sua! O ponto é que tudo fica mais simples quando podemos decidir a vida pelo retrovisor. As escolhas que não foram feitas, aquelas decisões que tomamos, a bifurcação no caminho e a interrogação eterna: “e se eu tivesse pego a outra estrada?” Essas cogitações imobilizam nossas ações remetendo para o futuro do pretérito os projetos abandonados, criando a ilusão de que tudo seria diferente.
Ocorre que não tem como voltar lá, mas é possível seguir com os olhos bem abertos, aproveitando toda essa experiência e ponderando melhor as decisões. Sempre aconselho as minhas amigas solteiras a conversar com a ex do pretenso namorado antes de se envolver. Parece doido, mas isso vai gerando uma teia de proteção entre as mulheres. Até porque essa forma de agressão mais sutil de alguns exemplos trazidos aqui, não gera capas de jornal e nem dá manchete.
Sabe o que chama atenção? É o olho roxo, o hematoma, a tesourada, a facada, a morte. Daí já é tarde… Se ligue nos sinais e busque toda ajuda que puder para não engavetar seus sonhos profissionais. Não temos ideia do que somos capazes!