Presidencialismo de coalizão e os desafios do governo Lula

Uma das principais características de todos os governos que se sucederam à ditadura militar (1964-1985) foi a formação de uma ampla base de apoio parlamentar no Congresso Nacional. O sociólogo e cientista político Sérgio Abranches definiu, em um artigo pioneiro, esse arranjo institucional como presidencialismo de coalizão (Presidencialismo de coalizão: o dilema institucional brasileiro. Dados – Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro. vol. 31, n. 1, 1988, pp. 5 a 34) e mostra como, desde 1945, com o fim da ditadura do Estado Novo, com exceção do período ditatorial, os partidos dos presidentes eleitos eram minoria no Congresso Nacional e dependiam de coalizões para governar e que esse processo teve continuidade nos governos de Fernando Henrique Cardoso, Lula, Dilma e Michel Temer, como ele analisa, trinta anos depois do artigo, no livro Presidencialismo de coalizão: raízes e evolução do modelo político brasileiro (Companhia das Letras, 2018).

Em 2018, no curso da campanha eleitoral, que resultou na vitória do candidato da extrema direita, a retórica, como parte da estratégia de se apresentar como “alguém de fora do sistema” era a recusa de governar de acordo com o modelo institucional vigente de até então (o presidencialismo de coalizão) que, segundo o candidato tinha sido sempre constituído na base do “toma lá, dá cá”, considerado como espúrio, com suas inevitáveis práticas de clientelismo e corrupção.

A tentativa inicial do novo governo, para tentar dar um mínimo de coerência entre promessas, discursos e a prática, foi a de governar sem uma base parlamentar sólida no Congresso Nacional, contando apenas com o apoio dos partidos que haviam feito parte da coligação vitoriosa e assim,  ao se recusar a negociar com os parlamentares e partidos, levou ao que Sergio Abranches chamou de “protagonismo retaliatório do parlamento”, e que em confronto com instituições e práticas que garantiram a governabilidade na redemocratização, o presidente seguia no “arriscado caminho limítrofe ao autoritarismo”. Como se constatou, não durou muito tempo e o velho padrão, com o chamado Centrão à frente, foi reconstituído e com um poder ampliado, com o controle do orçamento federal, orçamento secreto  etc.

O que Abranches mostra é que esse modelo, por ser baseado em negociações com vários partidos, com demandas por verbas, cargos etc., se por um lado garante as condições para governabilidade, por outro tem seus custos, levando muitas vezes ao presidente da República se tornar refém dessa “base aliada” e quando ocorre uma crise, com a saída desses partidos, o impeachment é inevitável, o que aconteceu em 1992 com Fernando Collor e em 2016 com Dilma Rousseff.

No entanto, nem todos consideram que as crises são inerentes ao presidencialismo de coalizão. Fernando Limongi e Argelina Figueiredo no artigo A crise atual e o debate institucional (revista CEBRAP, n.36, 2017) ao analisarem a crise política que levou ao impeachment de Dilma Rousseff afirmam que naquele momento “a crise reabriu o debate institucional, levando um retorno às teses que vêem na combinação entre presidencialismo e multipartidarismo a raiz de todas as crises políticas experimentadas pelo país”, o que eles não consideram desta forma, ao afirmarem a capacidade do sistema político brasileiro em produzir decisões em governos de coalizão, e que “mais do que uma relação vertical de conflito entre Executivo e Legislativo, observa-se uma relação horizontal de barganha e cooperação entre o Executivo e os membros da coalizão”.

Salientam que o termo presidencialismo de coalizão ganhou uma conotação claramente negativa em função da instabilidade que seria inerente em um sistema partidário com muitos partidos, ou seja, com uma enorme fragmentação partidária e assim todas as coalizões carecerem de uma base partidária sólida no Congresso Nacional e desta forma, dificultando à formação de uma base de sustentação consistente ao presidente da República.

A continuidade desse arranjo institucional coloca uma questão  relevante quando se pensa na formação de uma base do novo governo Lula em 2023 no Congresso Nacional que diz respeito ao número de partidos que constituirão essa base de apoio e a forma como esses partidos participarão do governo, em um dos parlamentos mais fragmentados do mundo. (Desde a primeira eleição direta para presidente da República, em 1989, são muitos partidos que integram o Congresso Nacional, em 1990 eram 19 partidos, 1994 passou para 21 , em 1998, diminuiu para 20, em 2002, para 19, em 2006, aumentou para 21, em 2010, para 22, em 2014 para 28, em 2018 para 30 e em 2022, 23 partidos, considerando as federações (PT/PV/PC do B), Federação PSDB/Cidadania) etc.

Como garantir a governabilidade tendo de se compor com muitos partidos, muitas vezes sem qualquer afinidade programática e/ou ideológica? Os partidos que apoiaram Lula  na eleição de 2022 foram PT, PC do B, PV (Federação Brasil da Esperança) , PSB, Psol, Rede Sustentabilidade, Solidariedade, Avante, Agir e Pros, que  com o resultado da eleição para o Senado (um terço, ou seja 27 senadores) e Câmara dos Deputados (513)  são minoria no Congresso Nacional e nesse sentido, antes de tomar posse, Lula tendo consciência e necessidade de formação de uma base de apoio no Congresso, e articula a formação de uma base incluindo outros partidos como União Brasil, PSD, MDB, PSDB, Cidadania e PDT.  Caso consiga, serão 312 deputados federais e 51 senadores, portanto, maioria nas duas Casas legislativas, fundamentais para garantir a governabilidade, aprovar reformas estruturais, e inicar o processo de reconstrução do país, depois do legado desastroso (em todas as áreas) da gestão de Bolsonaro.

No Brasil, a Constituição de 1988 garante ao presidente da República um expressivo poder de agenda, como a iniciativa legislativa preferencial, a determinação da tramitação em urgência de seus projetos, a exclusividade de iniciativa em matérias orçamentárias, e ainda legislar por decretos e medidas provisórias. Entretanto, contar com o apoio do Congresso Nacional é fundamental. Quem não fez isso, como Bolsonaro no início, teve conseqüências, como várias derrotas em votações de seu interesse, como o cancelamento dos decretos sobre posse e porte de armas,  a devolução pelo presidente do Senado de uma Medida Provisória pela qual se pretendia restabelecer a transferência da FUNAI e da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, que já havia sido rejeitada pelo Congresso em maio de 2019, entre outros.

Compor maioria no Congresso não é apenas distribuir verbas e cargos a aliados: exige negociações e habilidade política. As concessões são inevitáveis, mas com o risco de ficar refém do parlamento, como ocorreu com o governo (golpista) de Michel Temer, que se livrou, por duas vezes, da abertura de um processo de impeachment justamente por ter sabido compor uma maioria, assim como Bolsonaro, que teve o apoio não apenas do Procurador Geral da República, um aliado indicado por ele, como no Congresso Nacional, com os partidos que integram o Centrão e especialmente na presidência da Câmara dos Deputados e os mais de 100 pedidos de impeachment que sequer foram analisados.

Para manter uma coalizão é preciso ceder, ou seja, o presidente tem que ter não apenas a disposição como a capacidade de formar uma coalizão consistente, de construir uma agenda, respeitando as diferenças e pluralidade de interesses e ao fazer isso, tem de necessariamente compartilhar com o Congresso Nacional “parte dos bônus decorrentes desse poder” como diz Abranches. E Lula já mostrou sua capacidade de articulação (e conciliação) e agora resta-nos aguardar os seus desdobramentos. O orçamento secreto será mantido? E as emendas de relator?  E quanto às emendas parlamentares, terão critérios impessoais, transparentes e isonômicos? E as reformas estruturais serão possíveis com esse parlamento eleito em 2022?

Na impossibilidade de se constituir no país um novo arranjo institucional que não seja o presidencialismo de coalizão, enquanto durar, como esse ou outro nome, a necessidade de constituir maioria permanecerá, com os problemas inerentes a esse processo, que é o grande desafio do novo governo Lula.

 

Foto: Ricardo Stuckert/Divulgação