Entre a cruz e a espada

A imposição de uma religião é algo que pode ser visto como uma constante ao longo da história. O cristianismo impôs o catolicismo durante toda idade média, inclusive provocando guerras, mutilações e mortes. Quem não aceitava o cristianismo da igreja medieval, era excomungado, morto ou perseguido. Às mulheres restou as fogueiras e a alcunha de bruxas. Essas pessoas viveram entre a cruz e a espada, expressão medieval originada no movimento de Inquisição da Igreja Católica, na sua obsessão de converter todos para o catolicismo. Ou a pessoa aceitava se converter ao cristianismo e “ser salvo”, ou seria excomungado, castigado e/ou morto, por ser considerado um herege.

O filósofo moderno Baruch Espinoza, por exemplo, por defender o racionalismo religioso e crer que o “elemento supersticioso possibilita a mobilização de teses conspiratórias e de negacionismo científico”, foi excomungado em 1656, por ter se recusado a aceitar determinados aspectos da ortodoxia judaica. Sua carta de excomunhão dizia:

Por sentença dos anjos, pelo juízo dos santos, nós, irmãos, expulsamos, amaldiçoamos e imprecamos contra Baruch de Spinoza com o consentimento do santo Deus e o de toda essa comunidade […] com o anátema lançado por Josué contra Jericó, com a maldição de Elias aos jovens, e com todas as maldições da lei. Maldito seja de dia e maldito seja de noite, maldito seja ao levantar-se e maldito seja ao deitar-se, maldito seja ao sair e maldito seja ao regressar. Que Deus nunca mais o perdoe ou o aceite; que a ira e a cólera de Deus se inflamem contra esse homem, e que seu nome seja riscado do céu e que Deus, para seu mal, exclua-o de todas as tribos de Israel. Ordenamos que ninguém mantenha com ele comunicação oral por escrito, que ninguém lhe preste favor algum, que ninguém permaneça sob o mesmo teto que ele, que ninguém se aproxime dele a menos de quatro côvados de distância e que ninguém leia uma obra escrita ou concebida por ele (ESPINOSA, 2012, p. 19).

Em 17 de fevereiro de 1600, o padre, filósofo, místico, poeta e autor de peças de teatro Giordano Bruno, foi queimado vivo em praça pública de Roma, por ter desafiado a Igreja e discordado das ideias vigentes, entre as quais, a de que a Terra era o centro do universo. Ele, assim como Espinosa, escolheu a espada colocada em sua garganta pela igreja. Preferiram a ciência à fé cega que mantinha o poder político e a opressão social, tendo em vista que a “multidão não tem governante mais potente que a superstição, e é facilmente levado, sob o argumento da religião, a um momento para adorar seus reis como deuses, e outro para execrar e abjurar como a ruína comum da humanidade” (ESPINOSA, 2018). A fé cega é fundamentada nas superstições e mitos, como afirma Campbell (2018), que quando manipulados, podem ser causa de guerras e miséria.

No entanto, não foram apenas os filósofos da época que foram assassinados por pensar diferente do exigido pela igreja católica. As mulheres foram o grande alvo da inquisição e suas fogueiras. Até a Idade Contemporânea, dados históricos mostram que a Europa somou mais de 12 mil julgamentos por bruxaria, condenando cerca de 50 mil mulheres. Elas “atraíam muita desconfiança da Igreja. Quando elas se mostravam habilidosas para lidar com a vida, seja preparando medicamentos ou atuando como parteiras” (CORDEIRO, 2020). O patriarcado não poderia permitir que mulheres fossem livres e exercitassem sua espiritualidade. Assim como não poderia permitir que pensadores questionassem seus dogmas.

No período atual o ditado popular sobrevive, não por acaso. Ainda vivemos entre a cruz e a espada. A intolerância religiosa ergue sua espada todos os dias, ou se aceita sua cruz, ou se morre pela espada, mesmo que essa morte ocorra simbolicamente. Mas a morte simbólica de pessoas culmina em mortes de comunidades inteiras.

As mulheres continuam sendo vítimas do patriarcado, e parece que nenhum lugar é seguro para elas. São as “bruxas” que desafiam a opressão e o patriarcado todos os dias, desafiam o sistema para sobreviverem livres. As fogueiras mudaram, hoje é o feminicídio e o estupro que matam diariamente centenas de mulheres no mundo.

Nos tempos sombrios atuais, que nos remete as trevas medievais, a ciência segue sendo contestada e os “anti-vacinas” ganharam espaço através da ascensão da extrema direita ao poder. Essa extrema direita continua se servindo da fé cega de muitos, da igreja – dessa vez a evangélica neopentecostal – para fundamentar seus absurdos pautados nas distorções sociais, culturais e políticas. As mulheres continuam sendo caçadas, humilhadas, oprimidas e mortas por buscarem sua liberdade e independência, afinal, bruxas eram, na verdade, “apenas mulheres independentes, cultivando tradições inofensivas, que passavam de mãe para filha” (CORDEIRO, 2020).

Hoje, embora a cruz e a espada não estejam tão à mostra, elas existem e estão em todo lugar, continuam a ferir àqueles e aquelas que pensam o sistema de forma humana, plural e coletiva. O sistema é justamente o oposto disso tudo e não aceita mudanças que possam vir a muda-lo. Mudar significa a queda dos que manipulam e se utilizam dele para manter o status quo. A subversão continua nos causando condenação porque o sistema é monológico e não dialógico, como deveria e pressupõe a civilidade. Ou o aceitamos ou corremos o risco de morrer pela espada. Mas, como bem disse Clarice Lispector, “a salvação é pelo risco, sem o qual a vida não vale a pena”.

REFERÊNCIA:

Por que o pensamento de Espinosa é tão atual? Disponível em: https://www2.ufjf.br/noticias/2021/07/23/por-que-o-pensamento-de-espinosa-e-tao-atual/

SILVEIRA, Evanildo da. Quem foi Giordano Bruno, o místico ‘visionário’ queimado na fogueira há 418 anos. Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43081130

CAMPBELL, Joseph. As Máscaras de Deus: Mitologia Criativa, Vol. 4. 2 ª ed. São Paulo: Palas Athena, 2018.

CORDEIRO, Tiago. Bruxas: quem eram elas e por que iam parar na fogueira.

Disponível em: https://super.abril.com.br/historia/bruxas-quem-eram-elas-e-por-que-iam-parar-na-fogueira/. Maio, 2020.

ESPINOSA, Baruch de. Breve tratado de Deus, do homem e do seu bem-estar. Belo Horizonte : Autêntica Editora, 2012.

ESPINOSA, Baruch de. A Theologico-Political Treatise. GlobalGrey ebooks, 2018

Foto retirada do site Entre a cruz e a espada – Gabeira.com